Artigo - Melamina: fraude, repercussão e segurança alimentar

15.12.2008 | 21:59 (UTC -3)

Quem tem interesse na área de alimentos e nutrição tem visto assustado, desde setembro deste ano, as notícias sobre a contaminação de leite infantil na China por uma substância chamada melamina (não confundir com a melanina, que pigmenta nossa pele). Na verdade, isto foi a ponta do iceberg, uma tragédia com a morte de 6 bebês e a hospitalização de outros milhares (295 mil, segundo o governo Chinês) que revelou ao mundo a enorme extensão de ações inescrupulosas e fraudulentas em diversos tipos de produtos alimentícios fabricados na China. Trata-se, sem dúvida alguma, da maior fraude alimentar da história da humanidade. Cabe, então, uma explicação químico-histórica do ocorrido.

Hoje a China faz campanha para resgatar a credibilidade do mundo em seus produtos alimentícios, mas a amplitude do escândalo da melamina permitirá a desconfiança do consumidor e dos mercados internacionais ainda por muito tempo. Há indícios de que a contaminação proveniente da fraude no leite tenha se espalhado por diversos tipos de alimentos: bolos, biscoitos, misturas de cappuccino, chocolates, iogurtes, sorvetes, dentre outros. Simplesmente ninguém sabe onde e desde quando o leite fraudado vinha sendo usado. Há também registros de contaminações significantes em carne de frango e ovos devido à adição em rações e agora surge a suspeita de que a fraude tenha se estendido para produtos a base de soja.

A melamina (2,4,6-triamino-1,3,5 triazina) é usada na produção de resinas, colas e plásticos. Esta substância está normalmente presente nos alimentos em geral, sob baixas concentrações (e por isso não tóxicas), devido a migração das embalagens. Os níveis permitidos de melamina em alimentos são: 0,5 mg/kg do peso corpóreo/dia na Europa, sendo que as amostras de leite em pó da China chegaram a apresentar 2500 mg/kg, cinco mil vezes maior que o permitido na legislação européia.

Na adulteração de alimentos a melamina é adicionada para dar a falsa aparência de um alto teor de proteínas. Nesta situação, a adição de melanina ao leite em pó foi utilizada para burlar o controle de qualidade do leite que determina o teor de proteína, dosando o nitrogênio total presente. Ora, a molécula de melamina é constituída aproximadamente de 67% de nitrogênio e, desta forma, foi possível mascarar a enorme adição de água ao leite que depois foi processado a leite em pó.

A história do uso da melamina como fonte de nitrogênio não protéico vem dos

anos 60, quando um grupo de veterinários da África do Sul tentou usá-la para baratear a alimentação de ovelhas. Foi quando se descobriu que a melamina formava cristais nos rins dos animais, matando as ovelhas. Apesar deste mal sucedido teste, os resultados foram pouco divulgados cientificamente e permitiram que o uso da melamina continuasse indiscriminadamente e praticamente sem controle das agências de segurança alimentar. Nos anos 70 era tão comum adicionar melamina e conseqüentemente seus derivados às rações que cientistas italianos criaram um método para dosá-la em ração para peixe e descobriram que 60% das amostras testadas haviam sofrido adição de melamina.

Em 2004 e 2007 ocorrem respectivamente na Ásia e nos Estados Unidos mortes de vários animais domésticos após ingerirem rações contaminadas. Em 2004 chegou-se a atribuir os problemas renais a uma micotoxina (ocratoxina). Em 2007, após a constatação das mortes de animais por falência renal foi feito um grande recall de ração para cães e gatos nos Estados Unidos. A rastreabilidade dos insumos usados levou a glúten de trigo, proteína de arroz e glúten de milho, todos importados da China e adulterados com melamina. Nos Estados Unidos o processamento da ração para animais domésticos com produtos adulterados produziu resíduos que foram vendidos para fabricação de rações para porcos e frangos. Também em 2007 investigações do governo americano descobriram que parte do glúten de trigo com melamina foi usado em rações de peixes.

As análises de tecido dos rins nestes dois incidentes com animais domésticos obtiveram os mesmos resultados, característicos da formação de cristais insolúveis nos rins. Sim, as crianças na China morreram com os rins literalmente entupidos por cristais e provavelmente as outras milhares contaminadas sofrerão pelo resto da vida com problemas renais.

Em 2007, após o recall da comida para animais domésticos o FDA (agência de segurança alimentar e farmacêutica americana) emitiu um relatório onde foi taxativo ao concluir que os riscos de alimentos contendo melamina para seres humanos eram muito baixos. Esta declaração alerta as agências de segurança alimentar de que todo cuidado é pouco, tratando-se de extrapolações é necessário tentar prever o pior cenário. Ninguém imaginaria que a água residual da produção de louças e talheres plásticos na China iria parar no leite e provocar entupimento nos pequenos rins dos bebês, mas na verdade isto já estava ocorrendo nos mais diversos produtos alimentícios que possuem alto teor de proteínas.

A infeliz coincidência é que na verdade a produção dos cristais insolúveis não é culpa somente da famigerada substância melamina e sim da reação química desta com um de seus subprodutos, o ácido cianúrico, sob determinadas condições de pH que são atingidas no ambiente renal.

Ainda não há dados sobre este tipo de adulteração em leite ou rações ocorrendo no Brasil. Investigações urgentes devem ser feitas neste sentido, mesmo por que provavelmente em breve será exigido pelo mercado exportador algum tipo de certificação de produto livre de melamina.

A Embrapa Agroindústria de Alimentos (Rio de Janeiro/RJ) está se preparando para desenvolver métodos de análises capazes de determinar os mais baixos teores destas substâncias em leite e rações. Graças a um projeto aprovado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), em breve, esta metodologia estará disponível para atender as demandas do Ministério da Agricultura, indústrias e empresas exportadoras a fim de salvaguardar o consumidor desse tipo de fraude.

Msc. em Ciência de Alimentos, Analista da Embrapa Agroindústria de Alimentos. Contatos: www.ctaa.embrapa.br

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