Contribuição da cana-de-açúcar para segurança energética e mitigação da mudança climática

Por José Rubens Almeida Leme Filho, pesquisador da Embrapa Agropecuária Oeste

16.01.2023 | 13:51 (UTC -3)
Foto: Wenderson Araujo/CNA
Foto: Wenderson Araujo/CNA

Ao mesmo tempo em que, da imperiosa necessidade de segurança energética, decorre a importância da matriz energética contar com diversas fontes, o planeta demanda urgentemente a substituição das fontes fósseis de energia pelas renováveis, a fim de mitigar as mudanças climáticas que, aliás, têm levado ao aumento da frequência de eventos extremos, tais como as severas estiagens que, entre outros danos, provocam justamente crises energéticas. Neste contexto, percebe-se facilmente o imenso valor do aproveitamento de todas as oportunidades de aumentar a disponibilidade de energia renovável. Energia solar, eólica, bioeletricidade (a eletricidade produzida pela queima de biomassa), biocombustíveis (combustíveis veiculares também são commodities energéticas!), enfim, toda forma de energia renovável é bem vinda e não se deve desperdiçar nenhuma oportunidade de aumentar sua disponibilidade, de forma sustentável econômica, social e ambientalmente.

No sistema elétrico brasileiro, as usinas termelétricas movidas a combustíveis fósseis (gás natural, petróleo e carvão mineral), podem até ser desligadas nas épocas em que a demanda é suprida adequadamente pelas outras fontes. Tendo isso em vista, convém ressaltar que a termelétrica de combustíveis fósseis é, de longe, a mais cara entre as energias. Portanto, o aumento da produção de energias renováveis resulta em menor risco de crise energética, menor preço do kWh e, finalmente, redução das emissões de gases de efeito estufa.

A energia da cana-de-açúcar

De toda a energia que a cana-de-açúcar armazena em sua parte aérea, proveniente da fotossíntese, aproximadamente um terço se encontra nos açúcares do caldo, um terço no bagaço (resíduo da extração do caldo, rico em celulose) e um terço nas folhas e ponteiros (principais constituintes do resíduo de colheita conhecido como “palhiço”). Pelos açúcares comerciais (mascavo, cristal, demerara, refinado, etc), o valor comercial da sacarose motiva a produção canavieira no Brasil desde 1532. Já o etanol hoje conhecido como “de primeira geração” (ou seja, produzido pela fermentação de açúcares do caldo), era tratado como subproduto antes da década de 1970, pois é inviável cristalizar 100% da sacarose do caldo, então a produção de etanol era motivada, antes dos “choques do petróleo”, principalmente para aproveitar a sacarose residual no melaço, e também os açúcares glicose e frutose, presentes no caldo em menor quantidade que a sacarose, que são fermentescíveis, embora não sirvam à produção dos açúcares comerciais.

Desde o Proálcool, a importância comercial do etanol cresceu, inicialmente devido às altas do preço do petróleo, mas depois tornou-se mais clara a percepção da importância dos combustíveis renováveis para a redução das emissões de gases de efeito estufa. Dados o baixo valor nutricional do açúcar e o alto valor ambiental do etanol, atualmente, entre os produtos extraídos do caldo de cana, o etanol tem maior valor social e ambiental, embora o açúcar tenha um valor econômico muito estratégico para a estabilidade do setor produtivo, pois a diversidade de produtos comerciais ameniza os riscos decorrentes das oscilações e ciclos do mercado.

Quanto à energia do bagaço de cana, até o fim do século XX era aproveitada exclusivamente para as demandas energéticas dos próprios processos industriais. Hoje isso parece absurdo, mas naquele tempo não havia estruturas de mercado pelas quais as usinas pudessem vender excedente energético. Após a crise energética de 2001, passou-se a estimular a melhoria da eficiência das caldeiras, permitindo às usinas gerar excedente energético e vendê-lo (a chamada “cogeração”).

Finalmente, chegamos ao palhiço, resíduo de colheita com quase um terço da energia da cana. Quando a cana era colhida manualmente, a palha tornava tão insalubre, penoso e improdutivo o trabalho dos cortadores, que era necessário queimá-la em preparação da cana para colheita. Com o advento da colheita mecanizada, foi abandonada a prática da despalha pelo fogo, passando a produção canavieira a ter um novo resíduo de colheita, o palhiço, que de tão valioso é mais oportuno chamá-lo de subproduto do que de resíduo.

Palhiço de cana tem valor agronômico quando deixado no solo, pois promove grandes melhorias do ambiente produtivo e, consequentemente, melhores produtividades, tanto de colmos (TCH) quanto de açúcares (TAH) por hectare, redução da erosão, da perda de água por evaporação, elevação do teor de matéria orgânica do solo (que aumenta a eficiência da adubação), reciclagem de nutrientes (que a longo prazo chega a reduzir a necessidade de adubo), melhoria da qualidade microbiológica do solo. Em algumas culturas agrícolas anuais, por exemplo no sistema de sucessão soja/milho safrinha, existem práticas agrícolas fortemente recomendadas, tais como o consórcio de milho com braquiária, com fins de produzir palha, tal o valor agronômico deste subproduto. Enquanto isso, a cana-de-açúcar tem o privilégio de produzir por si mesma palha muito abundante, cerca de 140 kg de massa seca de palha para cada tonelada de colmos produzida.

Portanto, o palhiço deixado no campo é um valoroso insumo agrícola, enquanto o palhiço recolhido, portador de cerca da terça parte da energia da parte aérea da cana, pode ser matéria prima para produção de etanol de segunda geração (produzido pela fermentação da glicose obtida por hidrólise da celulose) e/ou para produção de bioeletricidade. Ambas as formas de energia são renováveis e constituem valorosas contribuições para a segurança energética e para a redução das emissões de gases de efeito estufa.

Neste contexto, questões se levantam sobre as melhores práticas para otimizar o aproveitamento deste subproduto da cana-de-açúcar: quanto deixar de palha no campo para garantir os benefícios agronômicos? Em quais circunstâncias é preferível o recolhimento total da palhada, ou o recolhimento parcial, ou deixar toda a palhada no campo? As questões parecem simples, mas as respostas dependem de diversos fatores, tais como características do solo e do clima, incidência de doenças e pragas (pois a incidência de alguns patógenos e insetos é favorecida pela palhada, enquanto a de outros é reduzida), além dos inúmeros aspectos em que o manejo da palhada influencia o ambiente produtivo, sendo necessário amplo e transdisciplinar conhecimento para subsidiar as melhores decisões.

Pelas pesquisas conduzidas na Embrapa Agropecuária Oeste, algumas recomendações nessa linha já foram publicadas, tais como as áreas preferenciais para recolhimento do palhiço da cana-de-açúcar visando à redução de doenças (Comunicado Técnico 264); a recomendação de, nas condições edafoclimáticas do sul de MS, evitar a prática conhecida como “desaleiramento” ou “desenleiramento” (Comunicado Técnico 248) 7. E há outros amplos trabalhos em andamento nesta linha de pesquisa, estudando diversos impactos da palhada no ambiente produtivo e na produtividade de colmos e de açúcares da cana, visando ao aprimoramento contínuo dos conhecimentos a subsidiar as melhores decisões, a fim de otimizar o aproveitamento do valoroso insumo agrícola e matéria prima energética conhecido como palhiço de cana-de-açúcar.

José Rubens Almeida Leme Filho, pesquisador da Embrapa Agropecuária Oeste

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