Toma lá, dá cá

Insetos e plantas mantêm relações complexas de coexistência; em alguns casos, ganham os insetos, noutros, as plantas.

10.11.2015 | 21:59 (UTC -3)

Animais e plantas podem se relacionar de diferentes maneiras, sendo que geralmente as relações estabelecidas são benéficas para ambos os membros da interação (harmônicas), ou para apenas um deles (desarmônicas). Nesse último caso, a vantagem é para o animal na maioria das vezes. Embora interações vantajosas para ambas as espécies envolvidas, como a polinização e a dispersão de sementes, sejam comuns, temos uma tendência a nos lembrar principalmente das interações desarmônicas, como a herbivoria. Talvez isso ocorra devido aos prejuízos econômicos que muitos insetos trazem às lavouras.

Uma visão ecológica destes processos pode nos surpreender, pois nem sempre abelhas polinizam as plantas de onde retiram o néctar ou formigas devastam plantações como verdadeiras pragas. Na natureza, bruxas e fadas podem trocar de papel facilmente, dependendo apenas do roteiro que lhes é apresentado.

A relação harmônica, ou benéfica, mais conhecida de todos nós é sem dúvida a polinização, destacando-se a entomofilia, ou seja, a polinização por insetos. O inseto coleta substâncias oferecidas pelas flores, como néctar, pólen, óleos, perfume ou resinas e, em contrapartida, transfere pólen entre as flores. A polinização é o passo que precede a fecundação. A polinização entre diferentes plantas da mesma espécie é o principal mecanismo de recombinação genética para os vegetais, fonte de variabilidade das características. Mas será que todos os insetos que visitam as flores são realmente polinizadores?

Aparências enganam

Muitas vezes o que parece ser uma relação mutualística (harmônica, onde as duas espécies que interagem se beneficiam) pode, na verdade, ser uma relação parasitária ou mesmo predatória. Há alguns anos trabalhamos com a biologia floral de uma Myrtaceae,

, conhecida como cerejinha do cerrado. Essa planta apresenta flores brancas, perfumadas, de simetria radial, não produz néctar nem óleo e o recurso floral para os polinizadores é seu pólen, muito pulverulento e abundante. Pudemos notar principalmente duas espécies de abelhas visitando as flores: Apis mellifera, a abelha Europa, e Eulaema nigrita, uma espécie de mamangava nativa do cerrado. O pólen é coletado pelas abelhas e é utilizado para a alimentação de todos os indivíduos da colônia.

As abelhas Europa eram muito mais abundantes e agressivas na coleta do pólen. Podíamos observá-las logo após a alvorada, sendo que por volta das seis horas haviam dezenas de indivíduos por planta, removendo quase todo o pólen. A mamangava

tinha o dobro do tamanho de A. mellifera, aparecia no campo depois da abelha-de-mel e o horário no qual apresentava mais indivíduos nas plantas coincidia com o horário de maior pulverulência do pólen, entre sete e meia e oito da manhã. A mamangava foi muito menos abundante nas plantas e evitava flores visitadas por Apis. Investigando a biologia floral e a polinização dessa Myrtaceae, observamos que a mamangava realizava polinização por vibração (buzz-pollination), processo comum em flores com anteras poricidas e não em flores com anteras deicentes como as da cerejinha. Em anteras deiscentes a coleta do pólem costuma ser feita por raspagem. O que estaria havendo? Por quê uma abelha executaria um elaborado comportamento de coleta de pólen, com alto custo energético, em uma flor que não requer isso?

Os experimentos de polinização revelaram que flores polinizadas por Apis não formavam frutos, somente as flores visitadas por Eulaema frutificavam. Assim sendo, embora comuns e abundantes nas plantas, removendo a maior parte do pólen, as abelhas Europa eram ineficazes como polinizadoras. Essas abelhas foram introduzidas no Brasil, através da colonização européia, pelos padres e jesuítas que utilizavam a cera como ingrediente para a fabricação de velas.

Os resultados desse nosso estudo indicam que além de não polinizarem as plantas em questão, as abelhas Europa se comportaram como ladras de pólen, prejudicando a planta e também o polinizador efetivo. Isso ocorre por que o comportamento de coleta e o tamanho corporal da Apis não permite que ela contate a superfície estigmática, que é a parte feminina das flores onde o pólen deve ser depositado. Concluímos que as mamangavas executavam a polinização por vibração nessas flores como um mecanismo alternativo para remover rápida e eficazmente o pouco pólen que restava após as visitas de Apis. Esse comportamento de coleta de pólen aliado ao tamanho da mamangava resultava na polinização. Nosso estudo mostra que animais introduzidos podem não somente ameaçar as espécies indígenas (nativas) de extinção, através da exclusão competitiva, mas, ameaçam também as espécies vegetais que dependem desses polinizadores nativos.

Herbívoros, podem ser animais pastadores, comedores de brotos, folhas, frutos, sementes, raízes, etc. Geralmente insetos herbívoros causam grandes danos agrícolas e prejuízos da ordem de milhões de dólares. Mesmo sem pensar em dinheiro, mas pensando em sua sobrevivência, as plantas investem pesado em defesa contra a ação dos herbívoros. Essas defesas podem ser químicas (presença de resinas, alcalóides, taninos), físicas (tricomas, espinhos, dureza foliar) ou biológicas (fenologia, associação com espécie protetora). Lagartas de borboletas, besouros, gafanhotos e formigas são considerados importantes pragas agrícolas. O agricultor brasileiro tem verdadeiro pavor da presença de formigas em suas plantações, justificadamente, pois as saúvas podem ser importantes agentes desfolhadores. Mas será que isso é verdade para todas as outras formigas?

Alimento e formigas

São conhecidas atualmente mais de 8.800 espécies de formigas, todas da mesma família Formicidae. Nenhuma delas é herbívora, ou seja, não comem folhas. As saúvas e quém-quéns (

e

, tribo Attini) na verdade são micófagas, ou seja, se alimentam de um fungo que cultivam sobre as folhas que coletaram. Essas formigas representam menos de 400 espécies. Todas as outras, mais de 8.400 espécies, são carnívoras ou se alimentam de secreções animais e vegetais (néctar, resinas, fezes). Temos trabalhado por vários anos no cerrado com plantas que possuem nectários fora das flores, em folhas e pedúnculos foliares ou florais. Esses nectários são conhecidos como extraflorais e não se relacionam com a polinização das plantas. Para quê servem então?

Observamos que formigas são importantes visitantes de nectários extraflorais (NEFs) e resolvemos testar diretamente no campo se formigas atraídas por NEFs poderiam produzir benefícios para as plantas e quais seriam eles. Num estudo com Volchysiaceae (

) demonstrou-se que formigas reduzem significativamente a herbivoria foliar, protegendo as estruturas fotossintetizantes das plantas da ação de insetos mastigadores. Além disso, plantas visitadas por formigas tinham uma produção de frutos 40% maior do que plantas onde impedimos a ação de formigas. Isso ocorreu por que as formigas predavam ou expulsavam das plantas herbívoros foliares e florais (besouros, lagartas e mesmo saúvas). Em outros estudos, com Malpighiacea (

), demonstramos que além dos benefícios produzidos pelas formigas, as vantagens dependiam da espécie de formiga associada. Nesse caso os principais herbívoros da planta eram

(Tripes, o lacerdinha) que atacavam botões florais. Plantas visitadas por formigas de pequeno porte apresentaram maior produção de frutos, pois essas formigas, ao contrário das grandes, conseguiam entrar nas câmaras florais e removiam os herbívoros.

Interações entre insetos e plantas são importantes por muitas razões, talvez a principal delas seja permitir aos ecólogos compreender melhor os mecanismos envolvidos em interações mutualísticas. Somente compreendendo claramente essas relações poderemos saber como interferem na manutenção da biodiversidade em ambientes naturais e agrícolas. Nessas interações há custos e benefícios para ambas as partes: as plantas em geral investem nitrogênio, água, sais e açúcares (moeda cara na natureza) para produzir néctar, pólen, resinas, perfumes e óleos; e também os frutos que atraem animais, tendo como benefícios a polinização, a dispersão de sementes, a proteção contra herbívoros parasitas ou predadores. Os animais por sua vez, pagam pela obtenção desses recursos com seu trabalho, defendendo a planta contra seus inimigos naturais, polinizando-a ou dispersando suas sementes. Assim sendo, o estudo do comportamento dos animais e da ecologia dessas associações são básicos para que compreendamos quando e de que maneira se contrapõem os custos e benefícios em interações animais-plantas. Uma coisa parece ser clara, cada caso é único e, pelo menos nos ambientes tropicais, estamos longe de encontrar padrões gerais que se repitam como verdades o tempo todo e em todos os ambientes. Como vimos, muitas vezes a abelha pode não ser a fada-madrinha que as plantas esperam, enquanto as malfadadas formigas, de bruxas podem se tornar fadas.

Kleber Del-Claro e Helena Maura T. Silingardi

Universidade Federal de Uberlândia

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