Efeito sanfona

A suplementação protéica dos bovinos em pastagens diferidas evita o problema do “boi-sanfona”, que perde, no inverno, 20% do peso que ganha na primavera-verão.

10.11.2015 | 21:59 (UTC -3)

As enormes vantagens competitivas que o Brasil apresenta para produzir carne bovina de qualidade são uma conseqüência da predominância de sistemas de produção pastoris que integram práticas conservacionistas no manejo dos recursos naturais (diferimento de pastagens, plantio direto, lotação etc.). Estas práticas garantem a biodiversidade, diminuem a produção de gases do efeito estufa (CO2 e metano) e produzem carne de qualidade com um perfil nutricional mais adequado à saúde humana (colesterol, ácidos graxos etc.), tornando possível a exploração da imagem de ecoeficiência na geração de produtos com valor ambiental agregado.

A pecuária de corte brasileira encontra-se estabelecida em seis grandes ecossistemas: tropical úmido (região Norte), semi-árido (região Nordeste), cerrados e pantanal (região Centro-Oeste), mata atlântica (região Sudeste) e subtropical (região Sul), os quais apresentam uma ampla variabilidade de clima, solo e vegetação. Apesar dos sistemas de produção encontrados nestes ecossistemas apresentarem as mais variadas características possíveis, todos eles apresentam o fato em comum de utilizarem as pastagens como substrato básico na alimentação dos animais. Nestas condições, o manejo racional das pastagens é uma meta difícil de atingir, porque as forragens apresentam uma marcada produção estacional, que gera uma grande diferença na capacidade de suporte entre os períodos ótimos e críticos para o crescimento das pastagens. A conseqüência imediata desta diferença é o baixo desempenho por animal devido ao fato de que 80% da produção anual de matéria seca (MS) ocorre no período de outubro a março (primavera-verão) sendo o período de abril a setembro (outono-inverno), caracterizado por alta umidade e baixas temperaturas no Sul (subtrópico), e por seca na região do Centro-Oeste (tropical).

Tanto a baixa disponibilidade de MS como o baixo nível nutricional das pastagens durante o outono-inverno determinam o famoso boi sanfona que perde no inverno 20% do peso que ganha na primavera-verão, aumentando a idade de abate, prejudicando a qualidade da carne e a rentabilidade do sistema. Nestas condições, a utilização de práticas de manejo, tais como o diferimento de pastagens e a suplementação, podem ajudar a contornar o problema da estacionalidade na produção e qualidade das pastagens.

Desenvolvimento garantido

O diferimento de pastagens consiste no fechamento de áreas ao pastejo entre janeiro e fins de março de modo a permitir que o acúmulo de pastagem na sua fase final de crescimento permita sua utilização durante o inverno. Além disto, o diferimento permite que o ciclo normal de desenvolvimento das espécies forrageiras seja atingido garantindo a produção de sementes e com isto a sustentabilidade e biodiversidade das pastagens nativas e cultivadas.

Normalmente, os diferimento são realizados em períodos que variam entre 30 e 90 dias permitindo acúmulos de 2.500 a 2.800 kg MS/ha, em pastagens nativas, e de 3.500 a 4.500 kg MS/ha, em pastagens tropicais. Independente da duração do período, o diferimento ocasiona uma queda gradual na qualidade da pastagem disponível, cuja intensidade depende do acúmulo de forragem e das condições climáticas. A duração do período de diferimento também depende da categoria animal que utilizará a pastagem. Para animais com maiores exigências nutricionais (bezerros, novilhas), é sugerido que os períodos de diferimento não ultrapassem 60 dias e para vacas de corte ou novilhos é possível utilizar períodos de diferimento de até 90 dias. Na Tabela (

), é possível observar que a qualidade de pastagem nativa diferida no outono teve pequenas variações até 60 dias de diferimento, porém com 90 e 120 dias a forragem teve uma queda acentuada na qualidade.

As pastagens diferidas ou feno-em-pé, como são conhecidas em algumas regiões do Brasil, apresentam como primeiros limitantes nutricionais à produção animal os baixos teores de proteína e minerais, os quais comprometem o crescimento e atividade dos microrganismos ruminais. Estes limitantes nutricionais podem ser contornados através do fornecimento estratégico de nutrientes (suplementação) visando a otimizar a digestão e o metabolismo das pastagens consumidas pelos ruminantes, através de alterações no ambiente ruminal e na população microbiana, que afetam a digestão ruminal, o fluxo da digesta para fora do rúmen e a disponibilidade de nutrientes para absorção no intestino. Neste sentido, a suplementação protéica de pastagens diferidas permite aumentos entre 15 e 45% no consumo de matéria seca e duas a cinco unidades percentuais na digestibilidade, que garantem ganhos de peso entre 200 a 300 g/amimal/dia.

Misturas múltiplas

Um dos suplementos protéicos mais utilizados são as denominadas misturas múltiplas ou sais proteinados que surgiram no Brasil por volta de 1987 e que são considerados como um dos responsáveis pelo grande crescimento da pecuária de corte na última década. Estes suplementos estão compostos basicamente por uma fonte de nitrogênio não protéico (uréia, amiréia), uma fonte de proteína verdadeira (farelos de soja, arroz, trigo etc.), uma fonte de carboidratos solúveis (milho, sorgo, mandioca etc.), um regulador de consumo (NaCl: 15-30%) e uma mistura mineral. Este tipo de suplemento permite consumos entre 0,1 e 0,2% do peso vivo e ganho de peso entre 200 e 300 gramas / animal / dia. O melhor resultado bioeconômico da utilização dos sais proteínados pode ser encontrado em situações onde as pastagens apresentam boa disponibilidade (2000 a 4000 kg MS/ha), baixos níveis de proteína (< 7% PC) e elevados teores de fibra (> 70% FDN).

Apesar de atualmente existirem um grande número de sais proteinados disponíveis no mercado, muitos deles têm sido formulados de forma empírica, sem considerar a relação entre os nutrientes contidos nas pastagens e sua variação estacional. Geralmente, este tipo de suplemento é formulado utilizando fontes de nitrogênio de rápida disponibilidade ruminal, cujo nível de utilização dependerá da disponibilidade de energia (MO degradável no rúmen) para o trabalho de síntese de microflora ruminal. Alguns trabalhos desenvolvidos no Laboratório de Nutrição de Ruminantes (Lanur) da UFRGS têm demonstrado que a eficiente utilização da suplementação protéica de volumoso de baixa qualidade precisa levar em conta a otimização de relações nutricionais que favoreçam o desenvolvimento, crescimento e trabalho dos microrganismos ruminais.

Na prática, o que se tem observado na formulação dos sais proteínados é a utilização de relações nutricionais que possibilitam uma maior incorporação de uréia nos suplementos, gerando excesso de amônia ruminal e um maior trabalho metabólico por parte do animal, com o conseqüente gasto de energia que poderia estar sendo utilizada para preencher as exigências de mantença e ganho de peso. Além disto, a maciça incorporação de uréia nos suplementos protéicos não considera o fato das bactérias celulolíticas precisarem de fatores de crescimento denominados ácidos graxos voláteis ramificados (isoácidos) gerados durante a desaminação ruminal da proteína verdadeira.

Recentemente foi conduzido um trabalho de pesquisa pelos alunos da Pós-Graduação em Zootecnia da UFRGS que trabalham no Lanur, sob a orientação do professor Harold Ospina Patino, visando a avaliar o desempenho de novilhos de corte mantidos em pastagem nativa diferida e suplementados com sais proteinados formulados para otimizar a utilização dos nutrientes contidos neste tipo de pastagens. O experimento foi conduzido na Fazenda São Lucas, localizada no Rincão de São Lucas, município de São Borja (RS), utilizando 64 novilhos, com idade de 18 meses e peso médio de 264 kg mantidos durante 118 dias (30/05 a 25/09 de 2003), em pastagem nativa diferida (90 dias). Os suplementos avaliados foram sal mineralizado (SM) e três sais proteinados (SP1, SP2 e SP3) formulados a partir de análises químicas e estimativas do consumo feitas em amostras da pastagem coletadas nos meses prévios ao início do experimento. Além disto, nos sais proteinados foram incorporados componentes tecnológicos visando a melhorar o desempenho dos animais e garantir maior segurança na sua utilização.

No gráfico, pode ser observado que os animais recebendo suplementação com sais proteinados apresentaram ganhos médios diários de peso (GMD) superiores aos apresentados por animais recebendo só sal mineralizado, sendo o suplemento SP3 aquele que propicio o maior GMD (287 g/dia). A suplementação com sais proteinados permitiu ganhos de peso entre 11 e 26 kg nos 90 dias de avaliação, considerados muito bons quando comparados com a perda de 20 kg de peso normalmente encontrada nesta época do ano nos animais mantidos em campo nativo. O consumo de sal proteinado de 400 g/animal/dia está dentro do limite que viabiliza economicamente a utilização deste tipo de suplementos: 0,15% do peso vivo.

Estes resultados são decorrentes da adequação da formulação do suplemento à disponibilidade de nutrientes do campo nativo e da incorporação de ingredientes que aumentam a taxa de degradação da fibra, a concentração ruminal de bactérias celulolíticas e a síntese de proteína microbiana.

Portanto, a utilização de sais proteinados formulados adequadamente para suplementar ruminantes em pastagens diferidas é uma ferramenta de manejo alimentar que permite contornar o problema da estacionalidade na produção e qualidade das pastagens, garantido bons desempenhos produtivos e reprodutivos e uma boa relação custo benefício. Contudo, é preciso levar em conta que a suplementação protéica de ruminantes em pastejo é um sistema complexo que compreende não apenas o animal e a pastagem mas, também, os microorganismos do rúmen, os quais possuem necessidades específicas e que qualquer programa de suplementação que não esteja preocupado com este último aspecto estará lançado a própria sorte. Os suplementos de terceira geração terão que incorporar em sua formulação conceitos da nutrição de precisão que permitam otimizar o ambiente ruminal para digestão da fibra contida nas forragens.

Harold Ospina Patino

UFRGS

* Confira este artigo, com fotos e tabelas, em formato PDF. Basta clicar no link abaixo:

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