Difícil erradicação

Aborto, nascimento de bezerros fracos, morte de animais, decréscimo na produção de leite e diminuição da taxa de fertilidade são alguns dos problemas causados pela leptospirose.

10.11.2015 | 21:59 (UTC -3)

As leptospiroses constituem um grupo importante de zoonoses, ou seja, doenças transmissíveis dos animais para o homem, de ampla distribuição mundial. As doenças causadas por leptospiras têm sido relatadas no homem, bovinos, suínos, eqüinos, ovinos, caprinos, cães, roedores urbanos e silvestres e em diversos mamíferos silvestres no Brasil. Entre os pesquisadores do tema, existe consenso de sua presença em todas as regiões do país. As informações obtidas nas pesquisas conduzidas nas universidades brasileiras permitem estimar o impacto bio-sócio-econômico das leptospiroses no setor pecuário.

Não restam dúvidas que as leptospiroses causam sérios prejuízos econômicos à bovinocultura nacional. Os abortos, nascimento de bezerros fracos, mortes de animais, decréscimo na produção de leite e diminuição da taxa de fertilidade são eventos observados nas fazendas brasileiras com diagnóstico clínico ou de laboratório.

Agentes etiológicos

As leptospiroses dos bovinos são causadas por bactérias do gênero Leptospira consideradas patogênicas para o homem e os animais. Elas são agrupadas em 26 sorogrupos que incluem aproximadamente 210 sorovariedades. Teoricamente, qualquer Leptospira interrogans pode infectar diversas espécies de animais e o homem. Na prática, verifica-se que somente um pequeno número de sorovariedades está presente em determinada área e espécie animal. Cada sorovariedade patogênica possui seu nicho ecológico e nele seu hospedeiro de manutenção. Dessa forma, os bovinos, na sua maioria, infectam-se com leptospiras adaptadas e mantidas pelos bovinos e raramente com outras sorovariedades cujos hospedeiros principais são roedores, cães, suínos e eqüídeos.

Modos de transmissão

O modo de transmissão mais importante no caso dos bovinos é o direto. Rebanhos leiteiros e de corte onde a densidade bovina é elevada apresentam condições favoráveis para difusão da doença para todos os animais. A leptospira é excretada em grande quantidade pela urina dos animais após a fase clínica da doença. A existência desses bovinos como portadores renais em até oito meses não só garante a perpetuação da doença no plantel como é um mecanismo muito eficiente de transmissão.

Além dos rins, as leptospiras ficam no trato genital das fêmeas e dos machos favorecendo a transmissão venérea. O sêmen contaminado do reprodutor e a infecção do útero das vacas são vias importantes de transmissão e colaboram para a permanência da doença no rebanho. As feridas na pele e as mucosas da boca, olhos e dos genitais são portas que não oferece resistência à entrada das leptospiras patogênicas.

A transmissão indireta ocorre quando os bovinos adquirem as leptospiras no meio ambiente. As leptospiras são eliminadas em grande quantidade na urina dos portadores renais que vão contaminar as pastagens, conseguem sobreviver nas gotículas do orvalho depositadas nas gramíneas por horas e durante vários dias na água límpida das lagoas, córregos e rios. A água funciona como um diluidor favorecendo a sobrevida da leptospira e atingindo não só os bovinos como outros animais domésticos e silvestres e o próprio homem.

Formas clínicas

O diagnóstico clínico, na maioria das vezes, não é conclusivo, pois outras doenças infecciosas como a brucelose, campilobacteriose, rinotraqueíte infecciosa bovina, diarréia bovina a vírus, alterações no manejo e deficiência macro e micro de minerais essenciais manifestam também em forma de abortos, infertilidade e repetição de cio. A forma aguda da doença é caracterizada por febre alta, hemoglobinúria, icterícia e perda de apetite. As vacas prenhes podem abortar, pois existe diferença de suscetibilidade entre elas e algumas leptospiras como a pomona são mais causadoras de aborto que a hardjo, que é a mais freqüente leptospira encontrada nos bovinos brasileiros.

Essa forma é observada em rebanhos que eram totalmente livres de infecção por leptospira e a introdução se dá com a chegada de bovinos portadores adquiridos de fazendas onde a doença é endêmica. Na forma subaguda os bovinos apresentam lesões renais e hepáticas e vacas podem ter mamites com leite achocolatado e estrias de sangue, redução na produção de leite, perda da fertilidade e nascimento de bezerros fracos. A mais comum é a forma crônica da doença. A ocorrência de retenção de placenta, abortos esporádicos, a maioria no terço final da gestação, repetições de cio, natimortos e mortes fetais são os eventos constantes no plantel quando a doença se estabelece como endêmica.

Todos esses sinais clínicos podem ser observados em outras doenças prevalentes em bovinos no Brasil. Assim, a confirmação da hipótese clínica do veterinário de campo é fundamental para orientar as ações de controle e ou erradicação da doença.

Diagnóstico de laboratório

Existem várias técnicas de laboratório para a determinação exata de qual leptospira está presente no rebanho. O isolamento seria o ideal, mas é difícil e muito oneroso. Não é usado na rotina em nenhum país do mundo. Cabe aos pesquisadores confirmar os achados dos exames sorológicos para orientar os produtores de vacinas para que incluam aquelas sorovariedades prevalentes no país. Na veterinária brasileira, a técnica sorológica disponível é o Teste de Microagluntinação com antígenos vivos. Ainda predominam no Brasil as Universidades como os principais centros de diagnóstico sorológico das leptospiroses dos animais de produção econômica e de estimação. No caso dos bovinos, o veterinário deverá encaminhar a estes centros no mínimo uma amostra de 20 vacas, contendo 2ml de soro sanguíneo, mantidos sob gelo, sendo dez de vacas que tenham abortado, ou repetiram cio, tiveram retenção de placenta, natimortos, queda brusca na produção de leite, sangue na urina e mamite com leite achocolatado. As outras dez vacas submetidas ao mesmo manejo e local de criação que não tenham nenhum problema reprodutivo e clínico. A comparação dos resultados destes dois grupos permitirá estabelecer um diagnóstico mais seguro se realmente o problema é leptospirose. Como mencionado anteriormente, os mecanismos de transmissão das leptospiroses são simples e eficazes. O diagnóstico será individual e do rebanho. Nossa pecuária, entre características, é reconhecida pelo número expressivo de bovinos em cada propriedade. Assim, se for observada a representatividade para cada rebanho, a propriedade pode ter milhares de vacas que essa amostra de 20 será suficiente para identificar qual ou quais são as sorovariedades presentes na fazenda. Esse conhecimento é básico para traçar as alternativas de controle e ou erradicação.

Controle e erradicação

Até o momento, o combate às leptospiroses dos bovinos no Brasil, com raras exceções, tem-se orientado no sentido da busca de uma convivência com o problema. A estratégia, em nosso entendimento, deve ser de erradicá-las e manter propriedades ou áreas livres das sorovariedades específicas que infectam os bovinos. A forma de produção é o elemento determinante para selecionar as medidas profiláticas e de controle. A tendência moderna na cadeia produtiva da pecuária bovina para leite e corte é predomínio da forma empresarial de produção. São propriedades consumidoras de bens industrializados, suplementos minerais, rações, sêmen, embriões e assistência técnica agronômica e veterinária. Tais condições atuam favoravelmente no controle de doenças infecto-contagiosas.

Nestes sistemas de produção, a ocorrência de doenças infecto-contagiosas está ligada a fatores externos, seja através da entrada do agente de novos bovinos altamente susceptíveis, seja de alterações no meio ambiente que favoreçam os mecanismos de transmissão de determinada doença. Dessa forma, as enfermidades nestas propriedades ocorrem de forma esporádica e geralmente em surtos epidêmicos. No caso das leptospiroses, elas tendem a se tornarem endêmicas, caso não ocorra a intervenção veterinária especializada. Como exemplo, numa fazenda moderna, após a ocorrência de um surto de leptospirose por hardjo, procedeu-se a vacinação de todos os bovinos a partir de quatro meses de idade, com reforço aos 30 dias para os primovacinados, revacinação semestral durante 24 meses, mais duas vacinações anuais.

Com o monitoramento sorológico semestral, tomou-se a decisão de suspender a vacinação, mantendo rigorosa vigilância na aquisição de novos animais e da origem do sêmen. A fazenda permanece totalmente livre sem vacinação há 14 anos. Persistem as condições para que a leptospirose torna-se uma endemia séria no plantel. É um rebanho de alta densidade de vacas por área, fator importante de risco, produção e produtividade elevada quer requer muita água para bebida e limpeza que favorece a sobrevida das leptospiras.

Como em todas doenças, as medidas preventivas devem ser tomadas. As propriedades que são livres só podem adquirir de animais de reposição ou para melhoria genética do rebanho de outras propriedades livres que tenham assistência veterinária. Exame sorológico por amostragem, a cada seis meses, é uma medida eficaz. Propriedades que trabalham com transferência de embriões estão constantemente adquirindo receptoras de distintas procedências e que não sabem a condição sanitária devem tratar com antibiótico e vacinar essas fêmeas uma semana antes da viagem. Nesses casos, poderá também ser adotada a vacinação anual preventiva, evidentemente com a(s) sorovariedade(s) prevalentes na região.

Nas fazendas com diagnóstico confirmado por laboratório, recomenda-se adotar dois métodos de erradicação. Qualquer que seja a escolha, a vacinação tem-se revelado prática, econômica e eficaz quando a vacina utilizada é produzida com a(s) sorovariedade(s) efetivamente residente nas fazendas. As vacinas multivalentes, com cinco ou mais tipos de leptospira, ou mesmo associada a outros agentes de doenças, na maioria dos casos, não irá resolver o problema.

A erradicação em rebanhos que possuem centenas ou milhares de bovinos deverá adotar a vacinação de todos os bovinos acima de quatro meses de idade, reforço para os primovacinados após 30 a 45 dias e revacinação semestral durante dois anos. Após o primeiro ano de vacinação, fazer sorologia para avaliar a possibilidade de passar para revacinações anuais. Em rebanhos pequenos, com animais de elite é possível encurtar o período de erradicação. Os animais positivos no exame sorológico serão tratados com altas doses de antibiótico. Essa medicação elimina o estado de portador renal, o que a vacina não consegue de imediato. O esquema de vacinação será idêntico ao anterior. Controle rigoroso será adotado na aquisição de novos animais como, também, em relação ao fornecedor de sêmen.

Leptospiras na pecuária brasileira

As leptospiras isoladas de bovinos no Brasil são poucas. A primeira foi a pomona em 1957, seguida da icterohae morrhagiae em 1961, guaicurus e goiano em 1980 no Estado de São Paulo e a quinta foi a hardjo, genótipo hardjoprajtino (amostra de referência Norma) e a sexta foi a mini, genótipo mini (amostra de referência Neguita), ambas em Minas Gerais em 1994. As amostras guaicurus e goiano foram isoladas na pesquisa de 500 rins de bovinos de raças zebuínas, aparentemente sadios, abatidos próximo a cidade de São Paulo, entre janeiro de 1962 a maio de 1968. Desse total, 350 bovinos eram de diferentes áreas de São Paulo e restante do Mato Grosso, Goiás, Paraná e Minas Gerais. Até hoje, não está estudado se essas duas sorovariedades são patogênicas para os bovinos. Existem leptospiras, como a wolffi, que são freqüentes nos resultados dos testes sorológicos e não é patogênica para bovinos, embora tenha sido isolada de caso grave de doença no homem na cidade de São Paulo.

A consulta de artigos científicos em revistas nacionais com corpo editorial, relatórios de órgãos de Defesa Sanitária Animal, teses acadêmicas, resumos de Congressos e outros eventos revelou que a hardjo, em aproximadamente 80 mil bovinos examinados, é principal leptospira que infecta bovinos do Rio Grande do Sul até as pradarias da clareira do Rio Branco em Roraima. As taxas variam de estado para estado, sendo as mais freqüentes entre 15 e 20%. A pomona vem em segundo lugar com taxas em torno de 3%. As outras sorovariedades ficam abaixo desse percentual. Deve-se levar em consideração que esse resultado inclui amostras aleatórias de algumas pesquisas acadêmicas e a maioria foi para confirmação de prévio diagnóstico clínico do veterinário.

Élvio Carlos Moreira

UFMG

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