Artigo - De medos, conflitos e dúvidas: será tão boa assim a tal Nanotecnologia?

30.12.2008 | 21:59 (UTC -3)

É fato: as pessoas têm medo do que é novo. Quase sempre foi assim, e nada indica para nós que isso vá mudar em breve. Temos alguns muitos exemplos na história sobre a rejeição das pessoas ao novo, mas quero lembrar apenas um: a tecnologia nuclear.

O caso das tecnologias nucleares é um bom exemplo de como um desenvolvimento pode suscitar medos, muitas vezes até corretos. Nos primórdios, a energia nuclear era uma promessa de energia barata, abundante e até, de certo modo, infinita. As promessas de um futuro incrível ficaram abaladas logo no seu início pelo primeiro grande fato público do uso do potencial nuclear, as bombas atômicas americanas na Segunda Guerra Mundial. Mas, de qualquer forma, o tempo passou, e o mundo continuava precisando de energia, e as usinas nucleares começaram a ser instaladas, até que o famoso acidente de Chernobyl, em 1986, definiu a opinião pública sobre a energia nuclear: ela é realmente perigosa. Ainda no Brasil, tivemos o fatídico caso de Goiânia, ainda marcado na memória de muitas pessoas do nosso país. Grupos ambientalistas e sociais passaram a se opor frontalmente a qualquer avanço na área, a construção de muitas usinas foi cancelada, governos que ainda não tinham domínio da tecnologia nuclear cancelaram programas de pesquisa e assim por diante.

Não quero aqui parecer defensor da energia nuclear, ou qualquer coisa do gênero, mas preciso admitir que tenho ainda dúvidas sobre todos os medos gerados. Se, por um lado, o uso massivo da tecnologia nuclear (a produção de energia) possa ser questionado por muitos aspectos, até econômicos, os seus benefícios na área médica são incontestáveis. Até hoje, a mais disseminada técnica de imageamento interno do corpo humano – a imagem de Raios X – é fruto de pesquisas na área nuclear; o tratamento de câncer por radioterapia, a irradiação de medicamentos, a detecção precoce de tumores – todas essas tecnologias muito bem vindas são fruto dos estudos na área nuclear. Há ainda benefícios pouco conhecidos de grande parte da população: na análise de materiais, na determinação de datas em arqueologia, e até mesmo na agricultura, há um grande numero de aplicações de técnicas nucleares extremamente benéficas, que advém dos mesmos trabalhos de pesquisa, do início do século XX, que resultaram também no uso energético, nas bombas atômicas e nos acidentes nucleares.

Então, qual é o juízo que devo ter? A tecnologia nuclear é boa ou ruim? Talvez, a melhor resposta a essa pergunta é que os avanços científicos nunca são “bons” ou “ruins”. No meu entender, o que faz das tecnologias algo bom ou ruim são os indivíduos que as utilizam. Posso pensar aqui novamente no episódio de Goiânia: o acidente nuclear aconteceu por causa do descarte inadequado de uma peça utilizada em tratamento hospitalar. Vejam que ironia, uma peça utilizada para tratamento de doentes com câncer – uma conseqüência boa – provocou o maior acidente nuclear da história do Brasil, pela irresponsabilidade de indivíduos que deviam ter destinado corretamente a peça como lixo nuclear, e não o fizeram

Também não quero, nesse curto espaço, defender se o uso da tecnologia nuclear é “mais boa”, ou “mais ruim”, discussão tão comum. O que quero é constatar que, por conta dos medos causados na população pelo mau uso da tecnologia nuclear, as dúvidas da população vieram a desestruturar em grande parte os programas de pesquisa em energia nuclear. Isso aconteceu particularmente no Brasil, fazendo com que competências nacionais ou fossem desestimuladas a trabalhar na área, ou – muito pior – procurassem abrigo em outros institutos de pesquisa no exterior, diminuindo a nossa massa pensante. Hoje é patente a dificuldade nacional de reerguer essa competência, seja para a produção de energia, seja para o desenvolvimento de outras aplicações. Ainda há competências instaladas, como as desenvolvidas no nosso centro, a Embrapa Instrumentação Agropecuária, ou no Centro de Energia Nuclear na Agricultura – CENA – da Universidade de São Paulo. Porém, para toda a comunidade que trabalha na área, é consenso que estamos muito aquém daquilo que poderíamos ter, se houvesse nesse tema uma relação melhor, ou menos conflituosa, com a população em geral.

Faço essa análise para pensar no que vejo hoje acontecer na minha área de pesquisa, nanociência e nanotecnologia. Apesar de a nanociência não ser algo assim tão novo (talvez o nome seja, mas estudos em ciência coloidal, que abrangem muito do que chamamos hoje de nanociência, existem desde o século XIX), a nanotecnologia surgiu como uma área geradora de riquezas há bem pouco tempo, e boa parte da população não tem visão clara do que ela significa. Há alguns produtos frutos da nanotecnologia, como os chips ou os HDs de computadores, que estão tão bem estabelecidos que não há nenhuma correlação em grande escala da palavra “nanotecnologia” com esses produtos. Mas, em outros, o nome tem sido utilizado claramente como diferencial de mercado: o nome “nano” já batizou muitos cosméticos, produtos de limpeza, eletrodomésticos, roupas, entre outros. É justamente nestes produtos que tem-se visto, recentemente, um medo dos impactos não conhecidos da nanotecnologia. Há a preocupação de que, por exemplo, as interações com a pele destes nanocosméticos sejam de tal forma novas que possam incluir mais efeitos deletérios que benéficos. Pensando um pouco mais no que temos hoje feito na Embrapa Instrumentação Agropecuária, na área de nanotecnologia, certas tecnologias de aplicação massiva, como pesticidas ou fertilizantes nanoencapsulados, são fonte de muita dúvida acerca do seu comportamento eventualmente nocivo em campo, ou das suas possíveis interações com indivíduos potencialmente em contato, como aplicadores.

As preocupações são legítimas, isso é verdade. Nenhuma tecnologia que tenha um possível desdobramento nocivo pode ser utilizada sem uma avaliação criteriosa que possa certificar em quais condições os benefícios são mais vantajosos que os possíveis riscos. Essa preocupação também é nossa, e pessoalmente, não tenho interesse de fugir desse tema. Porém, é assustadora a posição de alguns grupos sociais, que vêm tratando os possíveis riscos da nanotecnologia como algo tão pernicioso, que defendem uma moratória de todas as atividades na área, até que tenhamos certeza dos seus riscos. O tema é sério e assustador: para os mais interessados, uma busca na internet com os temos “nanotecnologia” e “moratória” dará uma quantidade surpreendente de documentos relacionados, mesmo em português. No lado mais brando da discussão, há grupos que defendem uma posição restritiva ao uso da nanotecnologia, por meio de normas rígidas, ou rotulagem específica de produtos. Todos esses grupos, de uma forma ou de outra, tem atuado nos círculos de decisão política e entre formadores de opinião, com atividades bastante regulares.

Não posso concordar com essa posição por vários motivos: primeiramente, a área que consideramos hoje como nanotecnologia é muito plural: há pesquisas na área de eletrônica, química fina, novos materiais, farmacêutica e cosmética, apenas para citar as mais conhecidas. Essa pluralidade impossibilita qualquer atitude restritiva que tenha sentido em todas as áreas: é verdade que uma regulamentação mais rígida para a aprovação de um cosmético “nano” possa ser algo coerente, porém, o que dizer de áreas que vem utilizando nanopartículas, como vários ramos da química fina, há pelo menos 50 anos? Como normatizar, dentro do mesmo conceito, os riscos possíveis ao usuário de um celular com bateria nanotecnológica, e os inerentes a um filtro solar com nanopartículas? Tentar classificar nanotecnologia como uma área coesa e única, como alguns vêm tentando, a meu ver é um erro.

Em segundo lugar, não posso aceitar a confusão comum entre financiamento à pesquisa / formação de recursos humanos com a entrada eventualmente irregular de novos produtos no mercado. Muito do que é alegado como ações de má fé dos fabricantes destes novos produtos, não informando os riscos dos seus produtos – o que implicaria na necessidade de uma regulamentação mais restritiva – não significa que devemos parar as ações de pesquisa na área, como advogam alguns. Mesmo a “moratória industrial”, como alguns defendem, pode significar uma queda crítica de interesse na pesquisa e disponibilidade de financiamento na área.

A necessidade de mantermos a pesquisa e os investimentos em nanotecnologia no Brasil é gritante, para que seja possível formar competências que dêem ao país alguma competitividade internacional nesses temas. Essa discussão, a da necessidade da pesquisa em temas estratégicos, ainda que polêmicos, foi em grande parte levantada na recente – e bem divulgada – discussão sobre o uso de células tronco embrionárias em pesquisa, mesmo que neste tema outros aspectos éticos fossem também levantados.

Por fim, meu temor é que, dessas dúvidas, a área de Nanotecnologia, uma portadora de futuro e um diferencial de futuro para o Brasil, seja contaminada por um sentimento de medo injustificado em muitos casos que, à semelhança da energia nuclear, gere mais repulsa quanto a seus riscos que apreço a seus benefícios, contaminando a estrutura de pesquisa e de formação de recursos humanos. Nesse momento em que estamos, seria extremamente triste que o Brasil perdesse capacidade estratégica de atuar em Nanotecnologia por falta de apoio e pela nossa falta de capacidade de divulgar o quão importante é hoje a área para o país.

Caue Ribeiro

Pesquisador da Embrapa Instrumentação Agropecuária

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