Artigo: A Raça Pé-Duro

22.11.2010 | 21:59 (UTC -3)

A investigação sobre a filogenia e estrutura das raças tem sido em termos históricos uma área de trabalho bastante ativa em virtude da sua relevância em termos culturais e sócio-econômicos. Os marcadores moleculares são apropriados para estimar esses parâmetros, pois, geralmente, não sofrem influência direta da seleção para características de interesse econômico e, muito menos, do meio ambiente.

 

Por muito tempo, no Brasil, a caracterização das diferentes raças de animais domésticos existentes era baseada, quase que exclusivamente, em características morfológicas e produtivas, sendo que estas podem ser influenciadas pelo meio-ambiente e muitas vezes são insuficientes para distinguir raças puras.

 

No que se refere à caracterização genética, até bem pouco tempo, os trabalhos realizados envolviam, na sua maioria, as raças comerciais. Os poucos trabalhos envolvendo raças nativas incluíam, fundamentalmente, estudos citogenéticos, grupamentos sangüíneos e polimorfismos protéicos.

 

Sabe-se que algumas raças nativas brasileiras, embora recebam denominações diferentes e habitem regiões distintas, apresentam fenótipos semelhantes que levantam dúvidas em relação à suas identidades como um tipo nativo distinto. Estas populações podem ser ou não geneticamente similares. Mesmo que estas pertençam ainda à mesma raça, devido ao isolamento geográfico e sua adaptação a nichos ecológicos diferentes, elas poderão ter acumulado diferentes alelos devido à deriva genética.

 

A caracterização genética é, portanto, uma valiosa ferramenta, que irá permitir a identificação da raça Pé-Duro, que por muito tempo permaneceu isolada em seu bioma. A preservação de raças nativas nos dias atuais deixou de ser uma preocupação de natureza histórica para ser uma realidade.

 

Vários organismos nacionais e internacionais (FAO, OEA, CNPq, Banco do Nordeste do Brasil, Embrapa, Universidades, INSA etc), além de criadores, estão empenhando esforços no sentido de conservar e melhorar geneticamente as diferentes raças de animais que aqui estão desde a época do descobrimento, muitas das quais em vias de extinção.

 

Antes da utilização do “melhoramento genético animal”, por leigos e especialistas, o número de raças locais brasileiras, nas diferentes espécies animais, era numerosa e todas perfeitamente ajustadas às condições ambientes naturais. A maioria das raças “nativas” brasileiras, por cruzamentos absorventes ou por substituição, deu lugar a outras que, por serem mais produtivas e melhoradas geneticamente, contribuíram para redução apreciável dessas populações.

 

Preservá-las é a única alternativa para avaliar a possível contribuição genética dessas raças em programas realistas de melhoramento genético. Aqui podem ser ressaltados argumentos capazes de justificar a preservação e melhoramento desses germoplasmas. As raças nativas, mantidas em estado de pureza ou sob forma de cruzamentos podem se tornar mais produtivas em seus ambientes próprios do que as raças exóticas melhoradas.

 

Essas raças podem ser fontes de genes ("bancos genéticos"), capazes de melhorar a resistência das raças especializadas, tornando a produção mais econômica. É preciso levar em consideração que, quanto mais produtivas forem as raças, maiores serão suas exigências em cuidados sanitários, nutricionais e de instalações.

A intensificação dos programas de seleção, nas raças de animais economicamente exploradas pelo homem, tem acarretado redução apreciável na variabilidade genética das populações, tornando-se, às vezes, difícil a obtenção de respostas em muitos esquemas de seleção. Exemplos evidentes podem ser vistos em suínos e aves, intensamente selecionados nas últimas décadas, bem como em populações de bovinos de leite em muitos países e a utilização massiva da inseminação artificial na raça Nelore nas últimas décadas.

 

As pequenas respostas, ou mesmo ausência destas, aos programas de seleção, têm sido creditadas ao esgotamento da variância genética aditiva, ou em outras palavras, essas populações atingiram o equilíbrio chamado "plateau genético". Os progressos alcançados, por meio dos programas de seleção não são lineares em relação ao tempo, de maneira que, mais cedo ou mais tarde, a população deixará de responder, atingindo aí o seu limite máximo, em conseqüência da exaustão da variação genética aditiva. Nesta altura, as raças nativas poderiam ser úteis através da doação de genes no sentido de gerar novas variações, capazes de permitir o estabelecimento de novos programas de melhoramento.

 

A conservação desses grupamentos tem ainda o seu lado histórico, que é o da "memória genética" contida nos animais que ajudaram a colonizar o país. De forma mais intensa ou não, ainda há vestígios genéticos de todas essas raças, através de seus mestiços. Há de se reconhecer que se essas raças foram capazes de superar, após dezenas de gerações de seleção natural, às adversidades do meio ambiente é porque reúnem genótipos compatíveis com as condições mais diversas e adversas da exploração.

 

Além disso, a intervenção do homem nos processos reprodutivos e de seleção nessas raças foi, no mínimo, modesta e não causou nenhuma modificação apreciável nas suas potencialidades, além daquelas recebidas da própria natureza. Outro aspecto a merecer consideração diz respeito à própria dinâmica dos processos de seleção artificial, que tornam esses germoplasmas nativos autênticas reservas gênicas.

 

Em 1977, apoiada pela Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia - Cenargen e Embrapa Meio-Norte, foi constituída a Associação Brasileira de Criadores de Curraleiro, sediada em Mara Rosa - GO, que teria por finalidade o registro de animais e a preservação daquela raça. Por outro lado, no Piauí existe a Associação Brasileira dos Criadores de Gado Pé-Duro, que congrega diversos associados, inclusive a Embrapa Meio-Norte, englobando um rebanho de mais de mil cabeças. No Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), existe pedido oficial das duas associações de criadores, o que gerou polêmica devido à similaridade fenotípica entre os rebanhos existentes nas distintas regiões.

 

Esse impasse fez com que o Ministério da Agricultura não reconhecesse os grupamentos genéticos como raça, elevando o risco de extinção desses animais. Como a raça Pé-Duro ou Curraleiro não existem oficialmente, os animais puros de origem não possuem registros e como tal, não podem ter sêmen coletado em centrais de coleta, não podem participar de exposições, não podem ser comercializados para reprodução com isenção de impostos e os criadores não conseguem empréstimos bancários para a atividade.

 

Assim sendo, a Embrapa Meio-Norte, decidida a esclarecer essa polêmica, através de seus pesquisadores da área de produção animal, está coletando material genético de rebanhos no Piauí, Goiás, Distrito Federal, São Paulo e Minas Gerais para fazer investigações moleculares no Agriculture Research Service (ARS)/United State Department of Agriculture (USDA), em Fort Collins, Colorado nos EUA.

 

Esperamos que os resultados coloquem fim a essa polêmica e a raça Pé-Duro seja reconhecida pelo MAPA como a única raça originária do Semiárido Nordestino. Entretanto a distância ou proximidade genética entre raças não são os únicos fatores que definem uma raça. Os biomas em que foram formadas, a cultura popular e a História são tão importantes quanto a constituição molecular.

 

Geraldo Magela Côrtes Carvalho

Pesquisador da Embrapa Meio-Norte

geraldo@cpamn.embrapa.br

Compartilhar

Newsletter Cultivar

Receba por e-mail as últimas notícias sobre agricultura

acessar grupo whatsapp
Agritechnica 2025