Como a histologia pode ajudar a entender a “anomalia” da soja no campo

Por Heloiza Leonardi (Esalq); Carlos Guilherme Theodoro, Gustavo Farias e outros

12.07.2025 | 16:21 (UTC -3)

O termo “anomalia” passou a ser amplamente utilizado por produtores rurais da região da BR-163, especialmente após a safra 2018/2019, para descrever um novo quadro fitossanitário que afeta a soja em fases reprodutivas. Segundo o dicionário da língua portuguesa, “anomalia” é definido como uma condição anormal, irregular ou fora do comum.

Diante disso, agricultores e técnicos passaram a empregar essa denominação para caracterizar sintomas atípicos observados a partir do estádio R5.1, como podridão de vagens e quebramento de hastes, que não se enquadravam nas doenças tradicionalmente conhecidas da cultura. O uso do termo se justifica pela manifestação incomum desses sintomas, que fogem ao padrão fisiológico esperado para a soja.

Estima-se que, a depender das condições climáticas da safra e das cultivares utilizadas, os danos provocados pela chamada “anomalia” da soja na região médio-norte mato-grossense podem reduzir a produtividade entre 16% e 30%, o que representa um potencial de perda de até 59 milhões de sacas.

Sintomas e estádios

Os sintomas iniciais costumam surgir entre os estádios R5.1 e R5.5, quando as sementes ainda estão em formação e são perceptíveis ao tato. Nesse momento, observam-se alterações discretas nas vagens (Figura 1A), que, mesmo com aparência externa aparentemente normal, já apresentam comprometimento interno. Com a evolução do processo, observam-se lesões que podem ser escurecidas na parte interna das vagens (Figura 1B), frequentemente associadas à presença de crescimento micelial de fungo nas sementes ainda em desenvolvimento.

Com o avanço da condição, as sementes passam a exibir tegumento enrugado, desuniforme, com coloração escura e perda de massa específica aparente (Figura 1C), embora parte da massa interna ainda possa permanecer preservada (Figura 1D). Essas alterações impactam diretamente a qualidade fisiológica e sanitária da semente, comprometendo o potencial produtivo da soja.

A distribuição dos sintomas no dossel da planta e entre as sementes não segue um padrão definido. Vagens sintomáticas podem surgir em diferentes partes da planta, e as sementes afetadas ocorrem de forma aleatória dentro das vagens - ou seja, nem todas as sementes de uma mesma vagem necessariamente apresentarão sintomas (Figura 2). No estádio R6, mesmo com a vagem ainda fechada, é possível observar sinais de germinação precoce das sementes, o que pode levar à abertura das vagens em estágios mais avançados (Figura 3).

<b>Figura 1 -</b> Sintomas de podridão de sementes de soja, popularmente conhecida como “anomalia”. <b>A-</b> Vagem apresentando sintoma inicial de “anomalia” em plantas na fase R5 (detalhe da seta vermelha). Fonte: Bonaldo (2023). <b>B-</b> Vagem aberta com sementes parcialmente desenvolvidas e presença de degradação interna da parede da vagem, com micélio branco. Fonte: Bonaldo (2023). <b>C-</b> Sementes apresentando escurecimento e enrugamento, com menor massa específica parente. Fonte: Farias (2023). <b>D-</b> Detalhe de semente com comprometimento da integridade tegumentar, porém com massa interna preservada, sem sinais evidentes de deterioração fisiológica ou infecciosa. Fonte: Farias (2023)
Figura 1 - Sintomas de podridão de sementes de soja, popularmente conhecida como “anomalia”. A- Vagem apresentando sintoma inicial de “anomalia” em plantas na fase R5 (detalhe da seta vermelha). Fonte: Bonaldo (2023). B- Vagem aberta com sementes parcialmente desenvolvidas e presença de degradação interna da parede da vagem, com micélio branco. Fonte: Bonaldo (2023). C- Sementes apresentando escurecimento e enrugamento, com menor massa específica parente. Fonte: Farias (2023). D- Detalhe de semente com comprometimento da integridade tegumentar, porém com massa interna preservada, sem sinais evidentes de deterioração fisiológica ou infecciosa. Fonte: Farias (2023)
<b>Figura 2 -</b> Distribuição das vagens sintomáticas de “anomalia” no dossel da planta e na vagem (Fonte: BONALDO, 2023).
Figura 2 - Distribuição das vagens sintomáticas de “anomalia” no dossel da planta e na vagem (Fonte: BONALDO, 2023).
<b>Figura 2 -</b>&nbsp;Distribuição das vagens sintomáticas de “anomalia” no dossel da planta e na vagem (Fonte: BONALDO, 2023).
Figura 2 - Distribuição das vagens sintomáticas de “anomalia” no dossel da planta e na vagem (Fonte: BONALDO, 2023).

Análises  laboratoriais

Diagnósticos laboratoriais realizados em tecidos sintomáticos revelaram a presença de diferentes patógenos, como Fusarium spp., Diaporthe spp. e Colletotrichum spp., sugerindo uma possível interação entre fatores bióticos e abióticos na etiologia da doença. Embora alguns estudos atribuam a causa da podridão de sementes a espécies como Diaporthe ueckeri e Diaporthe longicolla, essa hipótese ainda não é consensual dentro da comunidade científica. Os debates permanecem abertos, e há diferentes interpretações sobre a origem e os agentes envolvidos no complexo sintomatológico observado.

Nosso grupo de pesquisa, por exemplo, isolou um fungo pertencente a um gênero cuja espécie ainda não foi descrita na literatura científica mundial, e dados moleculares indicam tratar-se de um fitopatógeno distinto dos tradicionalmente associados à doença. Esses achados reforçam a necessidade de aprofundamento nas investigações e da construção coletiva de conhecimento sobre o tema, especialmente diante da complexidade do quadro sintomático observado no campo.

Além dos sintomas relacionados à podridão de sementes, nossos monitoramentos de campo - realizados desde a semeadura ao longo das últimas quatro safras - também registraram a ocorrência de lesões hipocotiledonares e fendilhamento da haste (Figura 4). Embora alguns profissionais considerem essas manifestações como variações fisiológicas normais, essa interpretação não encontra respaldo na literatura botânica especializada, o que reforça a necessidade de investigação mais aprofundada sobre sua origem e seu impacto no desenvolvimento da planta.

Diante disso, é fundamental que esses sintomas sejam tratados com o devido rigor técnico e não sejam subestimados como simples variações morfológicas. O diagnóstico correto é essencial para orientar estratégias de manejo eficazes e mitigar potenciais perdas de produtividade associadas a esse tipo de ocorrência.

<b>Figura 4 -</b> Sintomas de lesões hipocotiledonares e fendilhamento da haste em plantas de soja jovens (Fonte: BONALDO, 2023).
Figura 4 - Sintomas de lesões hipocotiledonares e fendilhamento da haste em plantas de soja jovens (Fonte: BONALDO, 2023).

Nesse contexto, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) uniram esforços para compreender, de forma mais aprofundada, como os sintomas da “anomalia” da soja afetam diferentes tecidos vegetais. Como resultado inicial dessa colaboração, foi publicado um resumo expandido na 39ª Reunião de Pesquisa de Soja (Leonardi et al., 2024), apresentando abordagens histológicas e ultraestruturais para análise do problema.

Para esse tipo de investigação, são necessárias tecnologias avançadas de microscopia, que possibilitam a visualização comparativa entre tecidos sadios e doentes por meio de imagens de alta resolução, com o uso de corantes específicos que interagem com grupos químicos distintos, permitindo o destaque de regiões e compostos de interesse (Marques; Soares, 2021).

Assim, amostras de plantas de soja (Glycine max) foram coletadas na Fazenda 3 Irmãos, localizada em Sinop (MT) e levadas para análise na Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiróz”, onde foram preparadas - fixadas (Karnovsky, 1965), coradas com o corante Azul de Toluidina e analisadas em microscópio de luz e microscópio eletrônico de varredura.

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