Construção do perfil do solo, uma prática essencial
Por João Pascoalino, engenheiro agrônomo, Doutor em Agronomia – Solos e Nutrição de Plantas e coordenador técnico e de Pesquisa do CESB
Favorável, por suas próprias características, ao estabelecimento e desenvolvimento de populações de fitonematoides, o sistema de cultivo de cana-de-açúcar demanda atenção e monitoramento criterioso. Combater estes minúsculos organismos passa pelo controle químico, através de nematicidas sistêmicos e pelo uso integrado de múltiplas e técnicas de manejo.
Os nematoides são reconhecidos em todos os países produtores de açúcar e de álcool, tecnologicamente desenvolvidos, como importantes problemas fitossanitários dos canaviais. Esses países, por conseguinte, processam o monitoramento sistemático das populações desses parasitos e efetuam o controle, quando necessário.
No Nordeste, como ocorre nas demais regiões produtoras de açúcar e álcool do Brasil, dois grupos parasitários de nematoides são reconhecidos como indutores de reduções significativas da produtividade agrícola da cana-de-açúcar. São os endoparasitos sedentários, representados, em primeiro lugar, pelas espécies Meloidogyne javanica e M. incognita, igualmente disseminadas na região. Esses nematoides são responsáveis pela doença denominada meloidoginose, que afeta indistintamente as variedades de cana cultivadas no Brasil. Os sintomas primários da doença são galhas e engrossamentos das raízes, formações semelhantes a tumores. Essas galhas podem ocorrer isoladas ou associadas em aglomerados. Examinando-se em maior aumento essas hipertrofias, podem também ser vistas necroses, produzidas por micro-organismos oportunistas, que se associam aos nematoides nas síndromes, aumentando a severidade da doença. Áreas no campo onde ocorrem meloidoginose, podem ser vistas reboleiras, ou seja, grupo de plantas da mesma idade, porém com diferentes alturas. Entretanto, em solos de adequada fertilidade e com a presença de boas condições climáticas, as plantas parasitadas apresentam os sintomas primários sem a formação das reboleiras. Outras espécies do gênero Meloidogyne têm sido identificadas associadas à cana-de-açúcar no Brasil. Entretanto, tais assinalamentos têm sido esporádicos e as virulências dessas espécies (capacidade de causar danos às plantas) não reconhecidas. O parasitismo dos nematoides das galhas pode ocasionar perdas que podem atingir valores superiores a 80% da produtividade de campo (toneladas de colmo por hectare), principalmente quando as condições climáticas e ambientais são desfavoráveis à hospedeira, a exemplo das deficiências nutricionais e longas estiagens. O segundo grupo parasitário de fitonematoides é o das lesões-radiculares, constituído pelas espécies Pratylenchus zeae e P. brachyurus, sendo a primeira a prevalente e a mais virulenta. Esses nematoides causam a doença conhecida por pratilencose e, igualmente à meloidoginose, também incide sobre todas as variedades cultivadas de cana. Seus sintomas primários são lesões radiculares necróticas, de pequenas dimensões (pouco milímetros), mas que podem confluir, formando extensas regiões de coloração marrom ou negra, constituídas por tecidos mortos. Nessas circunstâncias, o sistema radicular fica significativamente reduzido em volume e o desenvolvimento da parte aérea e do diâmetro do colmo reduzidos. Em análise pouco atenciosa de campo, essa síndrome pode ser confundida com a do raquitismo das soqueiras, conhecida doença bacteriana, muito frequente no Nordeste. Devido a essas semelhanças, o diagnóstico deve ser feito em condições laboratoriais, evitando-se o diagnóstico ocular de campo. Nas pratilencoses, geralmente, não são observadas reboleiras e sim extensas áreas com plantas raquíticas e portadoras dos demais sintomas da doença. Igualmente aos nematoides das galhas, os das lesões podem ocasionar perdas muito elevadas.
O sistema de cultivo da cana-de-açúcar é muito favorável ao estabelecimento e ao desenvolvimento de populações de fitonematoides no solo. Em primeiro lugar, pelo tipo de plantio, feito em solos desestruturados fisicamente e biologicamente, provocado pela mecanização do solo no pré-plantio. Esse processo dispersa a micro fauna e a flora, impedindo supressividade e manutenção de equilíbrio populacional entre os componentes das comunidades edáficas. Com isto, é permitindo que os fitonematoides multipliquem-se exponencialmente nos primeiros meses de desenvolvimento da cultura, pela alta oferta de alimentos e baixa competitividade biológica. Por outro lado, a cana-de-açúcar é uma cultura de longa permanência no campo, no mesmo lugar, ano após ano. Essas condições fazem com que os nematoides multipliquem-se em escala logarítmica na rizosfera. Assim sendo, as densidades populacionais médias (DPMs) desses organismos no solo atingem valores máximos e mantêm-se em níveis de dano ao longo das sucessivas colheitas. Por ocasião da renovação do canavial, devem ser analisadas dez amostras de solo de rizosfera e dez amostras de raízes, colhidas nas mesmas touceiras, distribuídas aleatoriamente, para diagnóstico do campo. Os volumes das amostras e as alíquotas utilizadas nas análises laboratoriais são padronizados. A média aritmética encontrada com os resultados e que caracteriza a DPM do hectare do talhão, é enquadrada em níveis denominados baixos, médios e altos. Esses níveis foram estabelecidos no Brasil por W.R.T. Novaretti, em 1997 (QUADRO 1), no estado de São Paulo.
Mais tarde, este sistema foi alterado por Moura, em 2005, procurando ajustá-lo às condições do Nordeste. Muito embora os valores numéricos desses níveis possam variar com o clima, variedade, níveis populacionais do nematoide e condições de fertilidade do solo, têm ajudado nos estudos epidemiológicos, diagnósticos e tomadas de decisão em Nematologia da cana-de-açúcar. No Nordeste, essas avaliações são conduzidas nos meses de junho, julho ou agosto, quando as DPMs atingem os mais altos níveis anuais, devido ao favorecimento das condições climáticas, especialmente chuvas e temperaturas do solo mais amenas. Paralelamente à determinação da DPM, devem ser feitas as avaliações das produtividades das unidades de cultivo, utilizando-se o procedimento amostral, padronizado para a cana-de-açúcar. De posse desses dados, ou seja, DPM e produtividade, efetuam-se os cruzamentos, para o estabelecimento do diagnóstico do campo, segundo o QUADRO 2, para posterior tomada de decisão. Caso seja diagnosticada uma fitonematose na unidade produtiva, deve-se programar o controle populacional do agente causal
A primeira opção que se apresenta para o controle dos nematoides em canaviais é o método químico, que se fundamenta no uso de um nematicida sistêmico. Trata-se de uma técnica especialmente buscada pelos agricultores por trazer resultados objetivos, em curto prazo (aumento da produtividade, no mesmo ano, na colheita da cana-planta). Os nematicidas podem ser granulados ou líquidos, carbamatos ou organofosforados, e a seleção do produto deverá ser coerente com as previsões das condições climáticas do local no momento da aplicação, ou seja, se é época de chuvas ou de estiagem. Consideram-se também as condições gerais do solo; se mais arenoso ou argiloso. A aplicação do método químico é mais indicada nos casos de populações em níveis médios, para serem reduzidas para o nível baixo. Para populações em níveis altos a aplicação de um nematicida sistêmico passa a ser uma decisão de risco, com baixa probabilidade de sucesso. Para a escolha do nematicida, como armazená-lo e para as recomendações de segurança na aplicação, manuseio e destino das embalagens vazias, um técnico especialista deve ser obrigatoriamente consultado.
O controle químico dos dois grupos de fitonematoides da cana-de-açúcar possui vantagens e desvantagens. A primeira vantagem é a praticidade da aplicação do produto, que é feita por meio de equipamentos acoplados ao trator. Esses aplicadores depositam o nematicida no fundo do sulco, no momento do plantio, com controle de gastos. Quanto aos resultados esperados, as pesquisas e o uso comercial têm demonstrado aumentos significativos da brotação, perfilhamento, desenvolvimento e produção de colmos na colheita da cana-planta, gerando aumento da produtividade. Este aumento pode ser da ordem de até 50%, comparando-se plantas tratadas com não tratadas. Entretanto, o uso dos nematicidas em cana-de-açúcar apresenta riscos e limitações epidemiológicas, que podem comprometer o sucesso das aplicações. A primeira é relacionada com o desaparecimento do efeito residual nematicida, que ocorre, em média, 90 dias contados após a aplicação. Este fato proporciona a volta dos nematoides para um sistema radicular sadio e sem necroses. Também, aos 90 dias, os inimigos naturais ainda não estão presentes de modo efetivo na rizosfera, fato que proporciona alta taxa de reprodução do nematoide-alvo. Consequentemente, é comum serem encontradas DPMs do nematoide mais altas em plantas tratadas que em não tratadas, por ocasião da colheita da cana-planta, a despeito da sua maior produtividade. Isto pode ser constado em Moura e colaboradores em “Efeito da aplicação de carbofuram em cana-de-açúcar variedade CB 45-3” (Fitopatologia Brasileira, p.503, 1998). Este fato compromete a longevidade das socas. Para contornar essa dificuldade, algumas empresas desenvolveram equipamentos para aplicações de nematicidas sistêmicos nas socas, após a colheita anterior. Entretanto, devido aos custos da nova aplicação e a outras implicações, sobretudo ambientais, e, também, devido aos danos causados às socas pelos equipamentos, essa prática tem sido evitada. Um segundo problema que traz implicações diretas quanto ao sucesso do uso do controle químico é a ocorrência de chuvas durante os 40 dias, contados após a aplicação. Ausência de chuvas durante esse período impossibilita ou diminui a taxa de liberação da molécula nematicida para absorção pelas raízes, enquanto chuvas torrenciais provocam lixiviação, com perdas do produto e consequências ambientais negativas. No Nordeste é comum a ocorrência desses dois fenômenos climáticos durante a época do plantio da cana-de-açúcar. Somam-se a essas dificuldades a relação custo-benefício do método, pois os preços dos nematicidas sistêmicos estão associados às variações cambiais, e aos malefícios à saúde humana e meio ambiente, causados pelos efeitos tóxicos dos resíduos nematicidas. Todos os nematicidas sistêmicos são da classe toxicológica 1, ou seja, altamente tóxicos. Atualmente, admite-se como valor de referência na avaliação do sucesso de uma aplicação de nematicida sistêmico em cana-de-açúcar, um aumento mínimo 25 t/h. Essa relação pode variar com as variações do preço do produto comercial e da tonelada da cana. Em condições ideais para a aplicação, este valor é facilmente obtido. A despeito dessas dificuldades, o controle químico dos nematoides da cana-de-açúcar por meio dos nematicidas sistêmicos continua sendo recomendado para situações definidas, conforme mostra o QUADRO 2.
O controle integrado dos nematoides da cana-de-açúcar foi desenvolvido por Moura e Oliveira, em 2009, (Nematologia Brasileira 67-73) e tem por objetivo recuperar canaviais pouco produtivos, destinados à renovação. São considerados nesta categoria, unidades produtivas ou talhões com produtividades iguais ou menores do que 40 t/h, em solos com populações de nematoides em níveis altos. Na região nordeste do Brasil, esses diagnósticos devem ser feitos até o mês de setembro, quando começam as moagens. Após serem diagnosticados, tais canaviais devem ser colhidos, de preferência no fim do período de moagem, ou seja, janeiro-fevereiro. O início do método de controle integrado dá-se por ocasião do início do período das chuvas (março-abril). As áreas identificadas como pouco produtivas, segundo o diagnóstico de campo, devem ser limpas, com a retirada das socarias, seguindo-se a destruição com fogo. Em seguida, o solo deve ser preparado para o plantio da Crotalaria juncea (geralmente no início de abril), efetuando-se a incorporação da cultura na primeira quinzena de julho, sempre por ocasião da floração. Trinta dias mais tarde, após a mineralização da maior parte do material orgânico incorporado, faz-se o plantio da mucuna-preta (Mucuna aterrima) (primeira quinzena de agosto), com incorporação em novembro, também por ocasião da floração. Durante o período de novembro até o inicio das chuvas do ano seguinte (março-abril), a área deve ser mantida em alqueive químico (herbicidas) ou mecânico (aração rasa e incorporação das ervas daninhas). Conforme é costume, o plantio comercial da cana-de-açúcar no Nordeste dá-se no início das chuvas. Nesse momento, um especialista em nutrição de plantas deve ser consultado, especialmente para verificar a necessidade de calagem. Os benefícios com o controle integrado são muitos. Inicialmente, independentemente da presença de nematoides no solo, o simples cultivo das duas leguminosas antes do plantio da cana-de-açúcar pode aumentar a produtividade desta gramínea em até 20%, conforme atestam muitos trabalhos da Seção de Leguminosas do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), a exemplo de “Efeito residual de leguminosas sobre o rendimento físico e econômico da cana-planta” de A.A. Mascarenhas et al., (1994) (Boletim Científico nº 32 e, também, o trabalho de Ambrosano et al., 1997, em “Leguminosas para adubação verde, uso apropriado para rotação de culturas”, entre outros. Os referidos autores constataram que estas duas leguminosas superaram todos os demais tratamentos experimentais com outras leguminosas em termos de aumentos da produtividade da cana-de-açúcar. Por outro lado, as duas leguminosas, cultivadas em sequência, atuam suprimindo diferencialmente populações de Meloidogyne spp. e Pratylenchus spp. A ação de controle dessas leguminosas é amplamente conhecida, conforme demonstraram pioneiramente no Brasil Silva, G.S. em 1988 (tese de doutorado/UFV,MG.), seguindo-se muitas outras publicações pertinentes.
Para operacionalização do sistema integrado de controle para nematoides da cana, é fundamental que as usinas e destilarias isoladas façam acompanhamento permanente das populações dos fitonematoides, utilizando-se dos seus próprios laboratórios, e de um nematologista bem treinado. Este acompanhamento deve ser feito nos meses mais favoráveis à biologia do parasito, dando preferência às áreas destinadas à renovação. Em nenhuma hipótese talhões improdutivos devem ser colocadas em pousio, pois esta prática pode manter populações de nematoides em atividade, devido a diversidade botânica das ervas invasoras, que aumenta a probabilidade de ocorrência de plantas hospedeiras no campo.
Até o momento, não existem variedades de cana-de-açúcar resistentes a nematoides. Entretanto, observações de campo têm revelado reações de tolerância em certas variedades. Entende-se por tolerância em Nematologia a capacidade de determinado genoma proporcionar ao hospedeiro uma resistência ao parasitismo de um fitonematoide, protegendo-o de danos significativos, mas proporcionando a sua reprodução. Do ponto de vista epidemiológico, o uso da tolerância varietal em Nematologia não deve ser incentivada para prática rotineira de controle, pois permite o aumento populacional do parasito no solo. Por meio deste aumento populacional descontrolado, o caráter tolerância pode ser afetado, assim como os índices de necroses radiculares, tornando sem efeito o primeiro.
Igualmente ao método químico, o controle integrado dos nematoides da cana-de-açúcar possui vantagens e desvantagens. A grande vantagem é se tratar de um método não poluidor e que enriquece o solo pelo uso dos adubos verdes. As desvantagens residem no tempo requerido (um ano) e na toxidez da crotalária para os animais domésticos. A incorporação das leguminosas, antes dificultada por falta de equipamentos adequados, é feita com relativa facilidade.
Muito embora outras técnicas possam ser aplicadas no controle dos nematoides da cana-de-açúcar, as que foram discutidas parecem ser as mais adequadas.
Romero Marinho de Moura, Universidade Federal de Pernambuco
Artigo publicado na edição 202 da Cultivar Grandes Culturas.
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