O setor da pecuária no Brasil apresenta características que o situam entre um dos que mais sofreram transformações qualitativas e quantitativas nos últimos anos. Indicadores claros dessas mudanças são os recordes de exportações de carne bovina e o fato da indústria trabalhar com perspectivas de vendas crescentes de carne industrializada, com maior valor agregado.
Setor tradicional, sendo uma das primeiras atividades produtivas implantadas no Brasil Colônia, a pecuária, como inúmeros outros setores no país, ainda se coloca num cenário de muita diversidade, de intensas diferenças regionais e socioeconômicas, além de variações que vão desde a utilização da mais moderna tecnologia genética à mais vetusta e precária atividade de subsistência. O setor ainda sofre restrições devido a problemas antigos, de difícil solução, como questões ligadas à sanidade do rebanho, baixa qualificação profissional do trabalhador rural e taxas irrisórias de ocupação animal em muitas regiões. Volta e meia recebe acusações de ser o responsável pelo desmatamento, de usar e abusar de produtos proibidos, como hormônios, e de não realizar um manejo adequado em vários sentidos.
Em meio às diferenças apontadas, entre 1994 e 2003, o rebanho bovino brasileiro passou de 158 milhões de cabeças para mais de 185 milhões, segundo dados e estimativas do IBGE. No mesmo período, o consumo per capita de carne bovina oscilou entre um mínimo de 32,6 kg (kg equivalente carcaça), em 1994, e o máximo de 38 kg, em 1996, fechando 2003 com 36,3 kg, com alterações pouco expressivas na década.
Mas, o que chamou atenção no período foi o que aconteceu em relação à exportação de carne bovina. A quantidade vendida passou de 378 mil toneladas (equivalente carcaça) em 1994, a 1.100 mil toneladas, em 2003. O valor das exportações também apresentou melhoria significativa. Segundo dados recentes (setembro de 2004) da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), o Brasil hoje vende carne bovina para 108 países. Números do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, com base em registros de exportações em 2003, mostram que a Inglaterra e o Chile foram os principais compradores, seguidos por Holanda, Rússia, Estados Unidos e Egito. O setor amplia suas vendas com a entrada da carne brasileira em novos mercados.
Se considerarmos o passado da pecuária brasileira, quando essa atividade era apenas uma atividade acessória, de subsistência e secundária, servindo para o abastecimento dos engenhos de açúcar no Nordeste, subordinada aos interesses da grande lavoura, percebe-se que de lá para cá muita coisa mudou. Merece destaque, portanto, a importância que o setor adquiriu no momento atual.
Esse é, então, um momento oportuno para que sejam repensadas algumas questões, pois nada melhor do que o fato de estar em evidência para se questionar certas práticas e reivindicar esforços que possam dar continuidade à expansão do setor. Os programas de qualidade da carne, de segurança alimentar e de rastreabilidade podem representar um avanço significativo em direção ao mercado externo. Por sua vez, o mercado interno também não deve ser desprezado. Em ambos os casos, confirma-se a necessidade de ações que possam agregar valor à carne diante de um consumidor mais exigente.
Nesse panorama, um aspecto assumiu, nos últimos 30 anos, um papel de inevitável significação estratégica. Trata-se da questão ambiental. Conforme se percebe, há uma tendência à utilização mais intensiva de recursos naturais e de tecnologia, isso representa, entre outras coisas, uma exigência maior de água, um uso mais intensivo do solo, um relacionamento diferenciado com a vegetação e com os atributos específicos do local. A intensificação da utilização requer maiores cuidados com a qualidade e a quantidade, pois qualquer desequilíbrio pode comprometer o sucesso do empreendimento. Uma avaliação mais científica da localização da atividade produtiva não pode ser desconsiderada, além de ser necessário fortalecer uma visão mais ampla e positiva do processo produtivo em relação ao meio ambiente.
Em relação à água, a dessedentação dos animais é uma questão primordial a ser considerada. Algumas práticas adotadas agravam o problema da oferta da água e a sua qualidade, e tem de ser reconsideradas pelos pecuaristas. Entre elas, situam-se o excesso de animais por área, o manejo inadequado das pastagens, as queimadas e o uso indiscriminado de produtos veterinários, agrotóxicos e outros insumos. Uma boa e simples atitude seria a substituição das tradicionais aguadas em cursos d’água, nascentes e lagoas por bebedouros planejados e mais adequados aos animais e ao meio ambiente.
A falta de cuidado com as matas ciliares fez com que elas diminuíssem consideravelmente. Desapareceram em função de alguns procedimentos incorretos, tais como a ocupação das várzeas para lavoura ou pastagens. Em grande parte, eram as terras mais férteis numa propriedade rural, de melhor topografia, pois foram as terras que receberam ao longo dos anos os sedimentos carregados das partes mais altas ou trazidos pelas cheias ocasionais. Foi por causa dessa fertilidade que muitas cidades surgiram nas várzeas e muitas propriedades rurais aí estabeleceram seus núcleos. Além da ocupação mencionada acima, as matas ciliares também forneceram madeira de primeira qualidade para construção de casas, cercas e currais.
À medida que o setor rural passou por um processo de intensificação de uso da terra, de modernização, em alguns casos, e, por outro lado, assistiu-se ao aumento populacional e ao crescimento vertiginoso de algumas cidades, a situação ambiental alterou-se em suas bases de sustentação. As matas ciliares diminuíram mais ainda. Sem elas, a água corre mais rápido e o solo solto, partículas desagregadas, seixos, troncos e pedregulhos de diversos tamanhos arrastados pela força da águas contribuem para o desgaste e a quebra dos barrancos e a conseqüente alteração do canal original. A fauna aquática e ribeirinha diminuem ou desaparecem e processos erosivos cada vez mais agressivos acontecem com freqüência cada vez maior. Vêm as enchentes, a seca e as pragas, e, junto com elas, o prejuízo.
Práticas simples de proteção ao solo, plantio direto e recomposição da mata ciliar com espécies nativas será um grande avanço. O custo do reflorestamento parece ser um entrave que pode ser equacionado a partir de iniciativas locais. A perda de uma parte da pastagem ou de uma gleba de lavoura localizada na várzea e que foi conduzida erroneamente no passado até o barranco do rio poderá ser compensada pelo aumento e pela melhoria da qualidade da água e pela volta dos pássaros e de outros animais silvestres.
O solo, em muitos casos, continua sendo mal explorado e o processo de degradação, apesar dos inúmeros alertas que foram feitos pelos técnicos na última década, prossegue. A erosão não foi eliminada da realidade agrícola do país e seus estragos ainda se fazem sentir em regiões onde as mais avançadas tecnologias convivem com as mais retrógradas.
A vegetação original do território brasileiro está desaparecendo nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. O desmatamento e as queimadas, não obstante a legislação e a vigilância, continuam de forma avassaladora. Falta um incentivo maior para o reflorestamento, afinal, a exploração produtiva da terra deve prosseguir, é inevitável e é desejável como atividade econômica, com todos os reflexos sociais positivos que possa trazer.
Os problemas e entraves existentes não deveriam dificultar um maior entendimento entre a sociedade, o governo e os produtores rurais. Esse entendimento deveria partir do princípio de que é vantajoso preservar e que, em termos técnicos, a harmonia entre pecuária e meio ambiente é possível. Resta saber como isso será conduzido em termos políticos.
Renato Muniz Barretto de Carvalho
Fazu
Newsletter Cultivar
Receba por e-mail as últimas notícias sobre agricultura
Newsletter Cultivar
Receba por e-mail as últimas notícias sobre agricultura