Do subprime nos EUA ao agronegócio brasileiro

A produtividade permitiu sobreviver diante da massa de subsídios e uma parafernália de estratagemas protecionistas da parte dos países mais desenvolvidos. Veja o artigo completo de especialista do Cepea.

10.11.2015 | 21:59 (UTC -3)

No outono de 2006 começa um acelerado processo de execução de hipotecas

nos EUA que, um ano após, resultaria numa crise de proporções globais.

A abundância de fundos – após um longo período de política monetária

frouxa e forte entrada de investimentos estrangeiros naquele país (que

financiam o crônico déficit corrente do país) – tinha levado a que

recursos significativos com atraentes condições de pagamento fossem

disponibilizados a clientes que tradicionalmente teriam poucas chances

de financiar suas moradias. Para que tais hipotecas pudessem ser

financiadas, elas foram repassadas a terceiros (investidores) como

parte dos chamados Veículos Estruturados de Investimentos (SIV), ou

seja, carteiras que continham papéis lastreados nessas hipotecas

conjugados com outros de menor risco e retorno.

Quando

os pagamentos relativos às hipotecas foram se escasseando – como é

comum entre clientes subprime -, os investidores começaram a sofrer

quedas substanciais no valor de suas carteiras. Ignorava-se, porém, até

há pouco, a extensão desse processo que, hoje se sabe, envolveu grandes

grupos financeiros, tanto nos EUA como em muitos outros países ao redor

do mundo. Quase que diariamente instituições financeiras de renome

reportam suas perdas, projetando novas revelações para curto prazo.

Enquanto isso, em grande parte suspenderam-se as operações de crédito

nos EUA, com os bancos negando-se a trocar recursos que socorreriam uns

aos outros.

Como a economia do EUA vinha de um crescimento

puxado pelo setor imobiliário, a queda nas vendas de novas residências

e a desvalorização dos imóveis reduziram a potência desse crescimento,

redução essa que se agravou com a substancial queda na capacidade de os

americanos continuarem se endividando com base em tais ativos. Daí para

projeções de um mergulho dos EUA num processo recessivo é um curto

caminho. E daí para projeções de recessão se alastrando para um grande

número de países é um simples exercício de lógica elementar: os EUA

respondem por cerca de 30% do PIB mundial. Com isso, as perspectivas de

recessão ampla vão se refletindo nas bolsas de praticamente todos os

países. Perdas vão se acumulando e o que era um problema financeiro vai

se tornando cada vez mais um tremendo "abacaxi" real, com reflexos no

emprego, nos salários e na renda.

O desafio para as autoridades

da maioria dos países está em que, para aliviar a crise, seria

necessário dar mais liquidez e reduzir os juros e, na medida do

possível, afrouxar os controles fiscais. O problema é que a economia

mundial está no meio de um repique inflacionário ligado principalmente

às commodities (petróleo, minérios, metais e produtos agropecuários),

mas envolvendo bens e serviços em geral. Evitar a recessão pode dar gás

para esse processo inflacionário em proporções mundiais. A "escolha de

Sofia" é qual dragão atacar: a recessão ou a inflação; não adianta

ficar em cima do muro, porque daí o que vai aparecer é a maldição da

estag-inflação.

Brasil faz a lição de casa

O Brasil tem

sido uma vítima assídua de crises autóctones e importadas. Os anos 1990

nos presentearam com ambos os tipos. O País foi contaminado pela crise

da Ásia, do México, da Argentina e se autocontaminou na crise cambial

do final de 1998. O Brasil quase sempre dependeu de capitais externos.

Comercialmente fechado ao exterior – por causa de sua xenófoba

estratégia de auto-suficiência -, o País apresentava crônicos déficits

comerciais que se financiavam com a entrada de capitais estrangeiros.

Qualquer alteração nas vantagens comparativas de rentabilidade e risco

tende a fazer tais capitais migrarem para portos mais seguros. Se o

México ia mal, a faísca saltava para o Brasil, que também se

incendiava; ou seja, também "pagava o pato". Pagava porque estava com a

casa desarrumada: dívidas pública interna e externa elevadas, déficit

altos em conta corrente, além de divisas insuficientes para sustentar

taxas cambiais irrealistas.

Felizmente, o Brasil conseguiu

melhorar muito seu "boletim escolar". Como diria, Guimarães Rosa: "o

sapo não pula por boniteza, mas, porém, por precisão". A escassez de

recursos para investimento motivou as privatizações, a fuga cambial

produziu a liberação e a flutuação cambial, o descontrole fiscal e a

pressão do FMI levaram à implantação do superávit primário. Quando não

foi possível mais contar com a "âncora cambial", foi estabelecido o

regime de metas de inflação. Todas essas mudanças – ainda que forçadas

– foram excelentes ao Brasil do ponto de vista macroeconômico e

internacional. A inflação se acomodou, virou civilizada. A divida

pública foi para um nível menos preocupante. Faltava fazer com que a

economia crescesse e melhorassem as contas externas.

Entra aí

então o fator "sorte": a economia mundial dispara, puxada pelos "RICs"

(Rússia, China e Índia). A generosa administração monetária americana

liderada por Greenspan manteve a taxa de juros ao fantástico nível de

1% ao ano em 2003/04. Quando deixou o FED em 2006, porém, Greenspan já

tinha elevado a taxa para 4,5%. A nova administração focada nos riscos

da inflação vinha elevando a taxa até que a crise imobiliária e

conseqüente ameaça de forte recessão forçassem uma mudança de sentido,

a que agora se assiste. Ou seja, quando e se a recessão for evitada,

haverá um processo inflacionário em avançado estágio a ser debelado.

Baixas

taxas mundiais de juros e liquidez abundante favorecem aplicações mais

ousadas: em imóveis, commodities e em países com maior risco soberano.

O Brasil se beneficia, na área financeira, com o ingresso de divisas –

não somente de aplicações em portfolio (títulos), mas também na forma

de investimentos diretos em empreendimentos novos ou já existentes. Já

a valorização das commodities ajuda tremendamente na conta comercial.

Apesar da tremenda valorização do Real, grandes saldos comerciais foram

os principais fatores que geraram a forte acumulação de divisas do País.

É

importante enfatizar que não foram somente os altos preços das

commodities que garantiram o sucesso das exportações do agronegócio.

Não há dúvida de que o substancial aumento de produtividade havido no

setor garantiu a competitividade do Brasil ante concorrentes do porte

dos EUA, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Argentina. Foi a

produtividade também que permitiu sobreviver diante da massa de

subsídios e uma parafernália de estratagemas protecionistas da parte

dos países mais desenvolvidos. Quando o Brasil acumula divisas beirando

os 200 bilhões de dólares, certamente os riscos de desestabilização

ante as turbulências da atual crise mundial ficam muito mais reduzidos,

mas não eliminados.

Quanto ao crescimento econômico, têm sido

imensas as dificuldades para o Brasil manter um par de anos com taxas

acima de meros 3% para o PIB. A explicação para isso evidentemente está

na baixa taxa de investimentos. Numa economia com nível médio de renda

com uma carga tributária acima de 35% do PIB, como é o caso do Brasil,

poucos recursos sobram para o investimento produtivo. Cria-se um

círculo vicioso: baixo crescimento leva a baixo investimento e baixo

investimento a baixo crescimento. A válvula que restava era buscar o

mercado externo onde o crescimento tem sido muito maior. O agronegócio

rapidamente entendeu o recado e partiu com tudo para conquistar novos

mercados mundiais; a indústria infelizmente tentou acomodar-se ao

mercado interno, temendo expor-se à concorrência externa e clamando,

como sempre, por proteção.

Os anos 2000 foram muito

interessantes: neles concretizam-se os resultados dos programas de

distribuição de renda e, em 2007, o mercado interno adquire força

automotora, o que não se via há várias décadas. Aqui cabe um

esclarecimento: o que viabiliza a distribuição de renda não foi

meramente a distribuição de dinheiro (na forma de bolsas e aumentos de

salário mínimo), mas o fato de que havia abundância de alimentos, cujos

preços não subiram apesar da forte demanda interna e das crescentes

exportações. Resultado: a parca renda distribuída dava para comprar

alimentos e parcelar os pagamentos de produtos industriais. Daí a

expansão forte do PIB em 2007, com investimentos baseados em bens de

capital nacionais e importados (a uma taxa de câmbio que é quase uma

pechincha).

Os

canais pelos quais a crise pode afetar o Brasil são de várias

naturezas. Em primeiro lugar, há a possibilidade de recessão com

variado grau de intensidade só nos EUA, ou só nos países do primeiro

mundo, ou envolver até os países emergentes. À medida que a crise

evoluir em qualquer caso, devido sua conotação creditícia, os países

envolvidos reagirão baixando os juros e/ou aumentando o déficit

público. Como essas reações podem ser rápidas, a recessão poderá ser

contida, ao menos parcialmente, no prazo de mais ou menos um ano.

Poderá haver, assim, contenção de demanda mundial com variados graus

nesse período.

O caso dos EUA tem um especial interesse: embora

uma recessão contenha parte do seu déficit em conta-corrente, esse

handicap deve permanecer enquanto o dólar não sofrer uma substancial

desvalorização corretiva. Que o dólar deve se desvalorizar e o juro

internacional baixar, parece quase uma certeza; esses dois fatores

tendem a favorecer o mercado de commodities, podendo mesmo compensar

uma recessão mais profunda.

Além disso, a menos que a crise se

transforme num desastre, o crescimento dos emergentes e dos países

menos desenvolvidos poderá assegurar uma demanda forte, especialmente

naqueles cujas moedas tenham se valorizado em relação ao dólar, em que

se denominam os preços das commodities.

É sabido, no entanto,

que crise pega os agronegócios em geral, e o brasileiro em particular,

sob stress decorrente da demanda acelerada por alimentos à qual se

sobrepuseram os programas de agroenergia com etanol e biodiesel, agora

sob emergência face à disparada do petróleo.

Assim, neste

momento de crise, é bom ter em conta certas limitações do lado da

oferta do agronegócio. Por um lado, há um verdadeiro "efeito manada"

nas intenções de produção de etanol devido à abundancia de recursos

(inclusive externos) e pelos incentivos artificiais do governo nos EUA,

União Européia e muitos outros países. As iniciativas brasileiras ficam

dificultadas, por um lado, pelos vícios protecionistas nos mercados

internacionais e, por outro, pelo entrechoque de demandas: o etanol

compete na produção com alimentos em geral e o biodiesel, para

viabilizar-se, precisa vencer o mercado de óleos vegetais comestíveis

em franca expansão mundial.

No Brasil, como em outros países, já

se fala em uma volta da inflação devido à alta dos produtos

agropecuários e ao petróleo. Aqui parece residir um dos maiores

desafios econômicos da atualidade. Por um lado, é incontestável a

mudança de preços relativos a favor das commodities. Por outro, é

necessário que as autoridades monetárias saibam administrar essa

mudança de preços relativos sem dar ignição a um crônico processo

inflacionário. Ou seja, trata-se de cortar a "correia de transmissão"

das commodities para salários e para preços industriais e, numa

seqüência fatídica, aos malfadados preços "administrados". Aqui

novamente os juros deverão desempenhar papel de relevo.

É uma

pena que tal tenha de ser feito quando o Brasil novamente tentava

emplacar dois anos de bom crescimento econômico. Fica claro também que

a fase de alimentos e matérias-primas baratas parece ter ficado para

trás. O Brasil valeu-se dela para melhorar a remuneração do trabalho e

a distribuição de renda. Seria uma pena que a volta da inflação

revertesse esse processo. O Brasil precisa, pois, manter um crescimento

firme, mas cadenciado e sem inflação. É preciso dar tempo para gestar

uma redução da carga tributária, pôr em andamento os investimentos

ligados ao PAC público e privado e, quanto ao agronegócio, permitir um

maior espaçamento para os investimentos – em lavouras, pecuária e

agroindústria – da ordem de quase 1 trilhão de reais que deverá fazer

nos próximos 10 anos para poder atender sem pressão inflacionária suas

múltiplas demandas.

Prof.

é responsável pelo cálculo do PIB do Agronegócio, Índices de Exportação

do Agronegócio e coordenador das pesquisas sobre comercialização

agropecuária do Cepea (22 produtos).

Outras informações sobre

as pesquisas do Cepea, bem como contato com o autor, podem ser feitas

através do Laboratório de Informação: 19-3429-8837 / 8836 e

cepea@esalq.usp.br / www.cepea.esalq.usp.br

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