No outono de 2006 começa um acelerado processo de execução de hipotecas
nos EUA que, um ano após, resultaria numa crise de proporções globais.
A abundância de fundos – após um longo período de política monetária
frouxa e forte entrada de investimentos estrangeiros naquele país (que
financiam o crônico déficit corrente do país) – tinha levado a que
recursos significativos com atraentes condições de pagamento fossem
disponibilizados a clientes que tradicionalmente teriam poucas chances
de financiar suas moradias. Para que tais hipotecas pudessem ser
financiadas, elas foram repassadas a terceiros (investidores) como
parte dos chamados Veículos Estruturados de Investimentos (SIV), ou
seja, carteiras que continham papéis lastreados nessas hipotecas
conjugados com outros de menor risco e retorno.
Quando
os pagamentos relativos às hipotecas foram se escasseando – como é
comum entre clientes subprime -, os investidores começaram a sofrer
quedas substanciais no valor de suas carteiras. Ignorava-se, porém, até
há pouco, a extensão desse processo que, hoje se sabe, envolveu grandes
grupos financeiros, tanto nos EUA como em muitos outros países ao redor
do mundo. Quase que diariamente instituições financeiras de renome
reportam suas perdas, projetando novas revelações para curto prazo.
Enquanto isso, em grande parte suspenderam-se as operações de crédito
nos EUA, com os bancos negando-se a trocar recursos que socorreriam uns
aos outros.
Como a economia do EUA vinha de um crescimento
puxado pelo setor imobiliário, a queda nas vendas de novas residências
e a desvalorização dos imóveis reduziram a potência desse crescimento,
redução essa que se agravou com a substancial queda na capacidade de os
americanos continuarem se endividando com base em tais ativos. Daí para
projeções de um mergulho dos EUA num processo recessivo é um curto
caminho. E daí para projeções de recessão se alastrando para um grande
número de países é um simples exercício de lógica elementar: os EUA
respondem por cerca de 30% do PIB mundial. Com isso, as perspectivas de
recessão ampla vão se refletindo nas bolsas de praticamente todos os
países. Perdas vão se acumulando e o que era um problema financeiro vai
se tornando cada vez mais um tremendo "abacaxi" real, com reflexos no
emprego, nos salários e na renda.
O desafio para as autoridades
da maioria dos países está em que, para aliviar a crise, seria
necessário dar mais liquidez e reduzir os juros e, na medida do
possível, afrouxar os controles fiscais. O problema é que a economia
mundial está no meio de um repique inflacionário ligado principalmente
às commodities (petróleo, minérios, metais e produtos agropecuários),
mas envolvendo bens e serviços em geral. Evitar a recessão pode dar gás
para esse processo inflacionário em proporções mundiais. A "escolha de
Sofia" é qual dragão atacar: a recessão ou a inflação; não adianta
ficar em cima do muro, porque daí o que vai aparecer é a maldição da
estag-inflação.
Brasil faz a lição de casa
O Brasil tem
sido uma vítima assídua de crises autóctones e importadas. Os anos 1990
nos presentearam com ambos os tipos. O País foi contaminado pela crise
da Ásia, do México, da Argentina e se autocontaminou na crise cambial
do final de 1998. O Brasil quase sempre dependeu de capitais externos.
Comercialmente fechado ao exterior – por causa de sua xenófoba
estratégia de auto-suficiência -, o País apresentava crônicos déficits
comerciais que se financiavam com a entrada de capitais estrangeiros.
Qualquer alteração nas vantagens comparativas de rentabilidade e risco
tende a fazer tais capitais migrarem para portos mais seguros. Se o
México ia mal, a faísca saltava para o Brasil, que também se
incendiava; ou seja, também "pagava o pato". Pagava porque estava com a
casa desarrumada: dívidas pública interna e externa elevadas, déficit
altos em conta corrente, além de divisas insuficientes para sustentar
taxas cambiais irrealistas.
Felizmente, o Brasil conseguiu
melhorar muito seu "boletim escolar". Como diria, Guimarães Rosa: "o
sapo não pula por boniteza, mas, porém, por precisão". A escassez de
recursos para investimento motivou as privatizações, a fuga cambial
produziu a liberação e a flutuação cambial, o descontrole fiscal e a
pressão do FMI levaram à implantação do superávit primário. Quando não
foi possível mais contar com a "âncora cambial", foi estabelecido o
regime de metas de inflação. Todas essas mudanças – ainda que forçadas
– foram excelentes ao Brasil do ponto de vista macroeconômico e
internacional. A inflação se acomodou, virou civilizada. A divida
pública foi para um nível menos preocupante. Faltava fazer com que a
economia crescesse e melhorassem as contas externas.
Entra aí
então o fator "sorte": a economia mundial dispara, puxada pelos "RICs"
(Rússia, China e Índia). A generosa administração monetária americana
liderada por Greenspan manteve a taxa de juros ao fantástico nível de
1% ao ano em 2003/04. Quando deixou o FED em 2006, porém, Greenspan já
tinha elevado a taxa para 4,5%. A nova administração focada nos riscos
da inflação vinha elevando a taxa até que a crise imobiliária e
conseqüente ameaça de forte recessão forçassem uma mudança de sentido,
a que agora se assiste. Ou seja, quando e se a recessão for evitada,
haverá um processo inflacionário em avançado estágio a ser debelado.
Baixas
taxas mundiais de juros e liquidez abundante favorecem aplicações mais
ousadas: em imóveis, commodities e em países com maior risco soberano.
O Brasil se beneficia, na área financeira, com o ingresso de divisas –
não somente de aplicações em portfolio (títulos), mas também na forma
de investimentos diretos em empreendimentos novos ou já existentes. Já
a valorização das commodities ajuda tremendamente na conta comercial.
Apesar da tremenda valorização do Real, grandes saldos comerciais foram
os principais fatores que geraram a forte acumulação de divisas do País.
É
importante enfatizar que não foram somente os altos preços das
commodities que garantiram o sucesso das exportações do agronegócio.
Não há dúvida de que o substancial aumento de produtividade havido no
setor garantiu a competitividade do Brasil ante concorrentes do porte
dos EUA, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Argentina. Foi a
produtividade também que permitiu sobreviver diante da massa de
subsídios e uma parafernália de estratagemas protecionistas da parte
dos países mais desenvolvidos. Quando o Brasil acumula divisas beirando
os 200 bilhões de dólares, certamente os riscos de desestabilização
ante as turbulências da atual crise mundial ficam muito mais reduzidos,
mas não eliminados.
Quanto ao crescimento econômico, têm sido
imensas as dificuldades para o Brasil manter um par de anos com taxas
acima de meros 3% para o PIB. A explicação para isso evidentemente está
na baixa taxa de investimentos. Numa economia com nível médio de renda
com uma carga tributária acima de 35% do PIB, como é o caso do Brasil,
poucos recursos sobram para o investimento produtivo. Cria-se um
círculo vicioso: baixo crescimento leva a baixo investimento e baixo
investimento a baixo crescimento. A válvula que restava era buscar o
mercado externo onde o crescimento tem sido muito maior. O agronegócio
rapidamente entendeu o recado e partiu com tudo para conquistar novos
mercados mundiais; a indústria infelizmente tentou acomodar-se ao
mercado interno, temendo expor-se à concorrência externa e clamando,
como sempre, por proteção.
Os anos 2000 foram muito
interessantes: neles concretizam-se os resultados dos programas de
distribuição de renda e, em 2007, o mercado interno adquire força
automotora, o que não se via há várias décadas. Aqui cabe um
esclarecimento: o que viabiliza a distribuição de renda não foi
meramente a distribuição de dinheiro (na forma de bolsas e aumentos de
salário mínimo), mas o fato de que havia abundância de alimentos, cujos
preços não subiram apesar da forte demanda interna e das crescentes
exportações. Resultado: a parca renda distribuída dava para comprar
alimentos e parcelar os pagamentos de produtos industriais. Daí a
expansão forte do PIB em 2007, com investimentos baseados em bens de
capital nacionais e importados (a uma taxa de câmbio que é quase uma
pechincha).
Os
canais pelos quais a crise pode afetar o Brasil são de várias
naturezas. Em primeiro lugar, há a possibilidade de recessão com
variado grau de intensidade só nos EUA, ou só nos países do primeiro
mundo, ou envolver até os países emergentes. À medida que a crise
evoluir em qualquer caso, devido sua conotação creditícia, os países
envolvidos reagirão baixando os juros e/ou aumentando o déficit
público. Como essas reações podem ser rápidas, a recessão poderá ser
contida, ao menos parcialmente, no prazo de mais ou menos um ano.
Poderá haver, assim, contenção de demanda mundial com variados graus
nesse período.
O caso dos EUA tem um especial interesse: embora
uma recessão contenha parte do seu déficit em conta-corrente, esse
handicap deve permanecer enquanto o dólar não sofrer uma substancial
desvalorização corretiva. Que o dólar deve se desvalorizar e o juro
internacional baixar, parece quase uma certeza; esses dois fatores
tendem a favorecer o mercado de commodities, podendo mesmo compensar
uma recessão mais profunda.
Além disso, a menos que a crise se
transforme num desastre, o crescimento dos emergentes e dos países
menos desenvolvidos poderá assegurar uma demanda forte, especialmente
naqueles cujas moedas tenham se valorizado em relação ao dólar, em que
se denominam os preços das commodities.
É sabido, no entanto,
que crise pega os agronegócios em geral, e o brasileiro em particular,
sob stress decorrente da demanda acelerada por alimentos à qual se
sobrepuseram os programas de agroenergia com etanol e biodiesel, agora
sob emergência face à disparada do petróleo.
Assim, neste
momento de crise, é bom ter em conta certas limitações do lado da
oferta do agronegócio. Por um lado, há um verdadeiro "efeito manada"
nas intenções de produção de etanol devido à abundancia de recursos
(inclusive externos) e pelos incentivos artificiais do governo nos EUA,
União Européia e muitos outros países. As iniciativas brasileiras ficam
dificultadas, por um lado, pelos vícios protecionistas nos mercados
internacionais e, por outro, pelo entrechoque de demandas: o etanol
compete na produção com alimentos em geral e o biodiesel, para
viabilizar-se, precisa vencer o mercado de óleos vegetais comestíveis
em franca expansão mundial.
No Brasil, como em outros países, já
se fala em uma volta da inflação devido à alta dos produtos
agropecuários e ao petróleo. Aqui parece residir um dos maiores
desafios econômicos da atualidade. Por um lado, é incontestável a
mudança de preços relativos a favor das commodities. Por outro, é
necessário que as autoridades monetárias saibam administrar essa
mudança de preços relativos sem dar ignição a um crônico processo
inflacionário. Ou seja, trata-se de cortar a "correia de transmissão"
das commodities para salários e para preços industriais e, numa
seqüência fatídica, aos malfadados preços "administrados". Aqui
novamente os juros deverão desempenhar papel de relevo.
É uma
pena que tal tenha de ser feito quando o Brasil novamente tentava
emplacar dois anos de bom crescimento econômico. Fica claro também que
a fase de alimentos e matérias-primas baratas parece ter ficado para
trás. O Brasil valeu-se dela para melhorar a remuneração do trabalho e
a distribuição de renda. Seria uma pena que a volta da inflação
revertesse esse processo. O Brasil precisa, pois, manter um crescimento
firme, mas cadenciado e sem inflação. É preciso dar tempo para gestar
uma redução da carga tributária, pôr em andamento os investimentos
ligados ao PAC público e privado e, quanto ao agronegócio, permitir um
maior espaçamento para os investimentos – em lavouras, pecuária e
agroindústria – da ordem de quase 1 trilhão de reais que deverá fazer
nos próximos 10 anos para poder atender sem pressão inflacionária suas
múltiplas demandas.
Prof.
é responsável pelo cálculo do PIB do Agronegócio, Índices de Exportação
do Agronegócio e coordenador das pesquisas sobre comercialização
agropecuária do Cepea (22 produtos).
Outras informações sobre
as pesquisas do Cepea, bem como contato com o autor, podem ser feitas
através do Laboratório de Informação: 19-3429-8837 / 8836 e
cepea@esalq.usp.br / www.cepea.esalq.usp.br
Newsletter Cultivar
Receba por e-mail as últimas notícias sobre agricultura
Newsletter Cultivar
Receba por e-mail as últimas notícias sobre agricultura