Muitas negociações e poucas ações em prol do agro brasileiro
Por Gustavo Branco, Vice-presidente da Abisolo
As frutas de caroço (ameixa, nectarineira e pessegueiro), juntamente com a pereira, são espécies de elevada importância econômica e social para as regiões Sul e Sudeste do Brasil, cujo cultivo está extremamente vinculado a propriedades gerenciadas por agricultores de base familiar.
Em 2022, a produção nacional de pêssegos foi de 208,8 mil toneladas, distribuídas em 15,6 mil hectares, sendo Rio Grande do Sul e São Paulo os principais estados produtores, com participação de 65,8% e 15,8%, respectivamente (IBGE, 2024). Em 2021, foram comercializadas nas centrais de abastecimento do país mais de 21,2 mil toneladas da fruta, com valor negociado de cerca de R$ 190 milhões (Epagri, 2022). Os estados de Santa Catarina (8,2%), Minas Gerais (5,4%) e Paraná (4,5%) também contribuem para a produção de pêssego. No caso da produção de pera, o Brasil importa da Argentina, do Chile e de Portugal quase a totalidade do consumo nacional, sendo que a produção brasileira ocupa somente 1.052 hectares.
A cultura do pessegueiro é uma das mais importantes cadeias produtivas agrícolas da região Sul, agregando relevante importância social e econômica. De acordo com a Radiografia Agropecuária Gaúcha de 2023, o pessegueiro é produzido em 364 municípios do Rio Grande do Sul, por 3.370 produtores, dos quais 2.368 se dedicam à produção para o consumo in natura (para mesa) e 1.002 para a indústria, a qual se concentra na região da Serra gaúcha e na Metade Sul do estado, respectivamente (Rio Grande do Sul, 2023). Assim, é uma atividade que gera empregos durante todo o ano nos diversos tratos agrícolas, indispensáveis à produção dos pomares.
Entre os principais problemas fitossanitários que prejudicam a produtividade e a qualidade das frutas de caroço e da pera produzida no Brasil, as moscas-das-frutas Anastrepha fraterculus e Ceratitis capitata (Diptera: Tephritidae) são as principais espécies de pragas, podendo ocasionar perdas de até 100% da produção, caso não sejam adotadas medidas de controle.
Historicamente, o controle químico da mosca-das-frutas nas frutíferas de clima temperado foi realizado com a aplicação de inseticidas com ação de profundidade, os quais controlam tanto adultos quanto as fases imaturas (ovos e larvas) localizadas no interior dos frutos. Ingredientes ativos do grupo dos organofosforados, como dimetoato, fenitrotiona, fentiona e triclorfom, foram registrados e amplamente utilizados nas culturas do pessegueiro e na macieira. No entanto, devido a processos de revisão de registros, a fentiona e o triclorfom foram retirados do mercado brasileiro para uso em frutas, mesmo permanecendo a comercialização para controle de ectoparasitas animais, enquanto o dimetoato e a fenitrotiona sofreram restrições de uso. O dimetoato permanece autorizado para citros e macieira, enquanto a fenitrotiona pode ser utilizada somente em macieira.
O hábito de depositar os ovos no interior dos frutos é o principal aspecto da bioecologia dessa praga que dificulta o seu manejo. Uma vez realizada a oviposição, é muito difícil o controle eficiente das larvas, principalmente com os novos inseticidas disponibilizados no mercado. Esse cenário é ainda mais desafiador quando são cultivadas variedades de ciclo médio/tardio, nas quais a pressão populacional da praga é ainda maior. Devido a essa dificuldade, o controle químico tem sido direcionado aos adultos, utilizando, principalmente, inseticidas piretroides (e/ou misturas), neonicotinoides e espinosinas que apresentam baixa toxicidade e reduzido intervalo de segurança (período de carência). Além da ineficiência no controle de larvas no interior dos frutos, apresentam efeito negativo sobre os inimigos naturais, responsáveis pela manutenção das populações de insetos-praga abaixo do nível de controle. A eliminação dos inimigos naturais aumenta a presença de pragas secundárias (ácaros e cochonilhas) que exigem a adoção de medidas adicionais de controle.
Embora existam dois inseticidas fosforados autorizados para uso na cultura (malationa e fosmete), o primeiro não apresenta efeito de profundidade sobre larvas e o segundo, embora apresente maior eficácia, está com um custo de aproximadamente US$ 100 por tratamento (na dose de 2 kg/ha) na safra 2024/25 e não possui registro para a praga.
Na prática, a falta de moléculas químicas eficientes registradas para o controle da mosca-das-frutas nas frutíferas de caroço e na pereira resulta em: a) aumento de perdas na produção, devido à ocorrência da praga (maior risco); b) maior número de aplicações nos pomares com inseticidas de efeito reduzido sobre a praga; e c) desequilíbrio de pragas secundárias, ampliando a incidência de ácaros e cochonilhas.
Esse cenário, por exemplo, tem resultado no aumento da ocorrência do piolho-de-são-josé, Comstockaspis perniciosa (Hemiptera: Diaspididae), uma cochonilha que atualmente possui o status de praga mais severa do pessegueiro e da ameixeira e que tem causado a morte de plantas, inviabilizando a produção em muitas propriedades. Além disso, a falta de moléculas eficientes reduziu o plantio de cultivares tardios e, consequentemente, diminuiu a janela de oferta da fruta nacional, que acaba sendo abastecida com importada. Em resumo, a ausência de inseticidas eficazes para o manejo da mosca-das-frutas tem resultado numa maior dependência da aplicação de inseticidas, em maior contaminação ambiental e em desequilíbrio ecológico nos pomares.
Em que pese o avanço no desenvolvimento e na transferência de tecnologias alternativas de controle, a pulverização de inseticidas em cobertura total nos pomares ainda é fundamental para o manejo da mosca-das-frutas. Dentre os inseticidas disponíveis no mercado com ação sobre larvas da mosca-das-frutas no Brasil, o dimetoato tem autorização para uso na citricultura e na pomicultura, com limite máximo de resíduos (LMR) de 2 mg/kg.
A situação enfrentada pelos produtores de frutas de caroço e pera no Brasil é similar à de diversas outras culturas que, devido à área cultivada ser reduzida, não despertam o interesse das empresas fornecedoras de insumos para incluir essas espécies em bula. Tal fato resulta em dificuldades para o manejo fitossanitário dessas culturas, acarretando perdas de produção e/ou a ocorrência de inconformidades nas análises de resíduos na comercialização dos produtos, levando a uma ilegalidade involuntária nestas cadeias produtivas.
Para equacionar essa situação, foi elaborado um dispositivo legal que visa favorecer o registro de agrotóxicos para o uso seguro e regulamentado nas Culturas com Suporte Fitossanitário Insuficiente (CSFI), internacionalmente denominadas “minor crops”, através da Instrução Normativa Conjunta Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) n° 1, de 16 de junho de 2014 (Brasil, 2014). Essa normativa incentiva o registro para as CSFI e simplifica as etapas do seu processo, com a apresentação de parecer técnico que passou a atender às exigências de estudos de eficiência agronômica, da organização das culturas em grupos e subgrupos e da realização dos estudos de LMR, que passaram a ser feitos para a cultura representativa do subgrupo, extrapolando-se para as demais CSFI desse subgrupo.
Apesar da publicação da INC n° 1, de 16 de junho de 2014, muitos esforços das cadeias produtivas agrícolas ainda precisariam ser realizados para que, de fato, os produtores agrícolas de culturas de menor expressão pudessem ter suporte fitossanitário adequado. Para abordar essa situação, foi criado o Comitê Minor Crops Brasil, uma “força-tarefa” cuja principal finalidade é articular o setor produtivo, a pesquisa, a indústria e as instituições governamentais responsáveis pela análise de registros de produtos químicos e biológicos para CSFI, a fim de disponibilizar mais opções de ferramentas para o manejo dessas culturas (Souza, 2019).
A iniciativa teve início devido às dificuldades enfrentadas pelos produtores, principalmente de pêssegos (maior área cultivada), no manejo da mosca-das-frutas, que nos anos de elevada infestação resultava em grandes perdas de produção, impactando o fornecimento de matéria-prima para a indústria de conservas. No caso da fruta produzida para consumo fresco, a mesma dificuldade era enfrentada, principalmente nos pomares com cultivares tardios, resultando em devolução de produtos pelos comerciantes, devido à presença de larvas nos frutos. O setor produtivo e a agroindústria, em conjunto com pesquisadores, identificaram o dimetoato como uma alternativa eficiente para o controle da praga, sendo uma ferramenta consolidada no Brasil para as culturas de citros e macieira.
Diante dessa realidade, houve uma aproximação entre o setor produtivo, a indústria de conservas e a indústria química, quando ocorreram discussões e o estabelecimento de parcerias para viabilizar recursos para a realização dos estudos exigidos para o registro. A indústria realizou os trâmites legais para a submissão do pleito no Mapa (eficácia agronômica), na Anvisa (toxicologia) e no Ibama (efeito sobre o meio ambiente), quando foram realizadas as análises de acordo com as competências, resultando na autorização do registro.
Participaram dessa parceria, representantes: (1) do setor produtivo (Sindicato dos Trabalhadores Agricultores Familiares de Pelotas, Associação dos Produtores de Pêssego da Região de Pelotas (APPRP), Sindicato das Indústrias de Doces e Conservas Alimentícias de Pelotas, Morro Redondo e Capão do Leão (Sindocopel)); (2) da pesquisa (Embrapa Uva e Vinho, Embrapa Clima Temperado, Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), Universidade Federal de Pelotas; (3) da indústria (FMC Agrícola); e (4) do poder público (prefeituras municipais de Pelotas e de Canguçu). A articulação entre estes representantes foi realizada pelo Comitê Minor Crops Brasil, cuja coordenação técnica é feita pela Federação da Agricultura do Estado do Paraná (Faep).
Essa iniciativa contempla a aproximação dos setores envolvidos para discussões e esclarecimentos sobre o problema fitossanitário e o estabelecimento de parcerias para a realização de estudos visando à viabilização do registro, ou seja, a legalização para recomendação e uso. No caso do dimetoato, o custo do estudo de LMR, uma das exigências para o registro, foi de R$ 140 mil, custeado pelo Sindocopel e a FMC.
Assim, a partir da cultura representativa do Grupo 2 (frutos com casca comestível) do Anexo I da INC n° 1, de 16 de junho de 2014, a macieira ofereceu suporte ao permitir a extrapolação do LMR para viabilizar o registro do produto inicialmente para a cultura do pessegueiro. Em dezembro de 2023, a Anvisa, através da Instrução Normativa n° 266, de 29 de novembro de 2023 (DOU de 1°/12/2023), incluiu na monografia do dimetoato a cultura do pessegueiro com LMR de 2 mg/kg, extrapolado a partir da cultura da macieira.
Em abril de 2024, o produto à base de dimetoato (Dimexion) teve seu registro autorizado para a cultura do pessegueiro, para uso na modalidade de isca tóxica, com intervalo de segurança de três dias, conforme a bula de uso da macieira. A partir dessa liberação, profissionais habilitados podem recomendar e produtores de pêssego utilizar o produto na cultura, seguindo as orientações de uso da bula para o manejo da mosca-das-frutas. Os resíduos de dimetoato até o limite de 2 mg/kg de fruta estão em conformidade com a legislação brasileira.
Uma nova etapa do registro está em análise, prevendo a recomendação e o uso em cobertura (área total). Nessa modalidade de aplicação, as culturas de ameixeira, marmeleiro, pessegueiro, nectarineira, nespereira e pereira serão contempladas. Assim que a autorização de registro for publicada pelo Mapa e a bula atualizada, os profissionais poderão recomendar e os produtores utilizar a ferramenta no manejo da praga nas culturas mencionadas.
Outro exemplo de parceria para registro de produtos ocorreu na cultura do coco, com a autorização de um produto formulado à base de glufosinato-sal de amônio, possibilitando o manejo de plantas daninhas, para o qual não havia nenhuma ferramenta legalizada até então. As informações técnicas, científicas e a viabilização de recursos para a legalização só foram possíveis pela cooperação entre a empresa Sococo, a Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), a Embrapa Tabuleiros Costeiros e a Embrapa Amazônia Oriental, e a Adama Brasil (representante da indústria).
O manejo fitossanitário é um dos principais desafios dos produtores agrícolas brasileiros. No caso das espécies consideradas “minor crops", esse desafio é ainda maior pela baixa disponibilidade de ferramentas de controle. No entanto, a legislação atual permite que, de maneira conjunta, associações de produtores, indústria e pesquisa possam estabelecer prioridades e trabalhar em termos de recursos humanos e financeiros para que sejam legalizados produtos para importantes problemas fitossanitários nos diferentes cultivos. Tal fato permite que os produtores desses cultivos evitem situações de inconformidade e possam produzir preservando a saúde dos trabalhadores, dos consumidores e respeitando o meio ambiente.
No caso do dimetoato, é sabido que existem restrições ao seu uso em alguns mercados internacionais, o que deve ser gerenciado pelos produtores para evitar que tais restrições resultem em inconformidades, caso os produtos sejam comercializados nesses mercados. Da mesma forma, entende-se que todas as ferramentas de manejo são empregadas dentro das boas práticas agrícolas, respeitando os intervalos de segurança e a proteção dos trabalhadores durante o uso.
Por Elisangeles Souza (Sistema Faep); Alexandre Menezes Netto (Epagri Videira); Dori Edson Nava (Embrapa Clima Temperado); e Marcos Botton (Embrapa Uva e Vinho)
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