Tokens de soja por máquina agrícola

A operação anunciada há alguns dias deixou diversas dúvidas; algumas respostas podem ser encontradas aqui

22.02.2023 | 15:09 (UTC -3)
Schubert Peter

Existem pelo menos quatro definições para "token". Na agricultura, o termo ganhou destaque com o anúncio de uma operação em que “produtor utilizou ‘grãos digitais’ para adquirir um trator”. A explicação fornecida pelas empresas envolvidas pouco ultrapassou a publicidade. A ideia desse tipo de operação comercial pode ser excelente para os produtores. Ou não.

A operação mencionada ocorreu a partir da "transformação" de grãos de soja em tokens (digitais). Esses tokens são "lastreados em ativos reais" e "têm valor idêntico em todo o território nacional, independentemente de onde e por quem foram emitidos, conforme preço indexado em índices", informaram as empresas envolvidas na operação. Acrescentaram haver "paridade", o que a torna uma "stable coin, ou seja, moeda de baixa volatilidade".

Uma stablecoin é um tipo de criptomoeda projetada para manter um valor estável em relação a uma moeda ou ativo, como o dólar americano, o ouro -- ou a soja.

Algumas stablecoins são lastreadas por reservas de moeda fiduciária ou ativos tangíveis, como ouro ou imóveis, que fornecem garantia de valor estável. Outras são criados por meio de contratos inteligentes em blockchains que utilizam mecanismos de estabilização de preços, como ajustes automáticos da oferta de moeda ou taxa de juros.

Sua principal vantagem consiste em permitir que os usuários realizem transações com criptomoedas com menor volatilidade. Isso porque seu valor estaria relacionado à oferta e à procura de ativos tangíveis -- ao contrário das criptomoedas "tradicionais".

No caso em análise, aparentemente, a moeda é lastreada em grãos de soja. Uma das empresas envolvidas informou transformar "grãos em um bem digital para guardar ou trocar por insumos, serviços e outras possibilidades". Seu porta voz acrescentou que o "ativo digital é um token fungível que representa o valor da soja e tem a precificação da soja".

Disse ainda que o produtor recebe os créditos (tokens) ao entregar o grão nos locais indicados pela empresa. A partir daí, torna-se proprietário dos ativos digitais. Por sua vez, a empresa que emite os tokens torna-se proprietária dos grãos.

Até este ponto, salvo pela questão tecnológica envolvida, o negócio consiste em mera troca. Uma parte entrega soja; a outra um "ativo digital". Esse conceito é antiquíssimo (coisa por coisa). Apenas a título de exemplo, no clássico Direito Romano, o instituto recebia o nome de "permutatio". Foi traduzido como permuta; ou troca.

As dúvidas surgem a partir daí.

Se a satablecoin é lastreada em soja ou outro grão, presume-se que sempre haverá paridade entre a quantidade de ativos digitais e a de grãos físicos. Isso gera diversos questionamentos. Por exemplo, considerando que o grão se deteriora, a emissora dos tokens estará sempre comprando e vendendo grãos sem aumentar o número de tokens para manter a paridade? Quem arcará com os custos dessas operações? Quem garante a paridade? Há auditoria?

O transcurso do tempo torna o gerenciamento desse mecanismo bastante complexo. Basta lembrar que por muitos anos as moedas dos países eram lastreadas em quantidades de ouro. Esse mecanismo ruiu pela incapacidade de manutenção da paridade física.

De qualquer forma, no caso de o produtor realizar uma operação rápida, adquirindo e repassando os tokens, o risco parece pequeno. Aqui surge o outro ponto de atenção: os tokens somente têm utilidade se alguém os aceitar em troca de produto ou de serviço.

O Real, no Brasil, possui poder liberatório e curso forçado. O primeiro significa sua possibilidade de ser usado para o cumprimento de obrigações. Ao entregar a quantia ajustada, no tempo, no lugar e no prazo acordados, o devedor está liberado de sua obrigação. Já o curso forçado implica na garantia de que o credor deverá receber o real como meio de pagamento da dívida. Isso está na lei.

Essas características parecem banais por causa do hábito. Mas não são. O credor não está obrigado a aceitar coisa diversa em pagamento, ainda que mais valiosa. Por exemplo, numa hipótese absurda, não se pode obrigar o credor de R$ 100 a aceitar em pagamento uma cédula de US$ 100. Da mesma forma, não se pode obrigá-lo a aceitar um "token", ainda que sua cotação sugerida pareça favorável.

Portanto, embora um produtor possa obrigar uma pessoa jurídica a receber determinado número de reais como pagamento por um trator, não pode fazê-lo em relação a uma quantidade de "tokens". Nada impede, todavia, que a concessionária aceite "tokens" como meio de pagamento. Mas essa decisão é uma liberalidade.

Isso conduz a outra questão: pessoas jurídicas, principalmente aquelas obrigadas a prestar contas a acionistas minoritários, aceitarão esse tipo de operação usualmente? Ou apenas em ocasiões que gerem exposição gratuita de suas marcas na imprensa?

O poder de reserva é outro ponto importante nas questões envolvendo a manutenção de ativos financeiros. Trata-se da capacidade de manter seu valor, seu poder de compra ao longo do tempo. O poder de reserva da moeda é influenciado por diversos fatores, como inflação, taxas de juros, estabilidade política e econômica do país emissor.

A maioria dos ativos tende a sofrer grandes oscilações em seu poder de reserva, podendo chegar a zero rapidamente sob determinadas condições. Nesse ponto, basta lembrar do que ocorreu com as ações das Americanas (AMER3) nas últimas semanas. Em meados de 2020, o ativo era negociado a R$ 120,00; em 11 de janeiro de 2023, a R$ 12,00; e em 17 de janeiro a R$ 1,17. Não há garantia. As oscilações são muito mais bruscas do que o usualmente se vê com moedas emitidas por Estados.

Ativos refletem em grande parte oferta e demanda -- e confiança. Até determinado ponto em 2008, poucos imaginavam a possibilidade de estouro da "bolha imobiliária" nos Estados Unidos, que se formou durante a década de 2000. Naquela época, muitos bancos americanos começaram a oferecer hipotecas com taxas de juros baixas e condições facilitadas para pessoas que não teriam acesso a esses empréstimos de outra forma. Essas hipotecas, conhecidas como "subprime", eram concedidas mesmo a pessoas com histórico de crédito ruim ou sem comprovação de renda.

Essas hipotecas subprime eram frequentemente negociadas com investidores por meio de instrumentos financeiros chamados "securitização". Eram agrupadas e vendidas como títulos de dívida no mercado financeiro (derivativos).

No entanto, muitos devedores hipotecários não conseguiram pagar as parcelas. Isso gerou grande número de execuções de hipotecas e desvalorização dos imóveis que garantiam esses empréstimos por excesso de oferta. A queda do lastro, o valor dos imóveis, causou crise no mercado imobiliário e financeiro dos Estados Unidos, que se espalhou para o resto do mundo.

Por último, a questão mais importante e que não foi respondida pelas empresas envolvidas: quando e como o proprietário de um token consegue convertê-lo em reais?

Nas condições gerais do site de uma das empresas envolvidas consta o alerta: "[...] O Usuário reconhece e aceita que usa o Site sob sua única e exclusiva responsabilidade. Cada Usuário conhece e concorda em ser o único responsável por suas ações dentro do Site. O Usuário sabe e aceita que ao realizar operações através do Site ele o faz por sua conta e risco. Em nenhum caso a [empresa] será responsável pelos lucros perdidos, ou por qualquer outro dano e/ou dano que o Usuário possa ter sofrido, devido às operações que são realizadas através do Site ou utilizando-se as tecnologias providas pela [empresa], especialmente aceitação, negociações, transferência e custódia de ativos virtuais. A [empresa] não será responsável pela interação do usuário com base na confiança depositada no sistema ou no Site [...]".

E acrescenta: "[...] da mesma forma, a [empresa] não será responsável ou garantirá o cumprimento das obrigações que os usuários assumiram com terceiros em relação aos pagamentos a serem feitos ou recebidos através do Site. [...] Em nenhum caso a [empresa] será responsável por danos diretos, lucros perdidos, ou por qualquer outro dano e/ou dano que o Usuário possa ter sofrido, devido às transações feitas ou não realizadas através do Site [...]".

Por fim: "[...] A [empresa] não garante a disponibilidade e a continuidade do funcionamento do Site e dos Serviços. Nem todos os serviços e conteúdos em geral estão disponíveis para todas as áreas geográficas. [...]".

Definições para token

O que é um token? Há várias explicações.

Em segurança da informação, um token é um dispositivo físico ou virtual que é usado para autenticação de um usuário. Ele é um mecanismo que gera uma senha única e temporária que é usada para verificar a identidade de um usuário.

Em criptografia, um token é uma sequência de caracteres que representa um valor ou um objeto. Esse valor ou objeto pode ser um texto, um número, um arquivo, uma chave criptográfica, entre outros. O token é geralmente usado para proteger a privacidade ou a integridade do valor ou objeto, permitindo que ele seja transmitido ou armazenado sem revelar o seu conteúdo real.

Em tecnologia de blockchain, um token é uma unidade de valor que é emitida por uma organização para representar um ativo ou utilidade específicos. Esses tokens são normalmente baseados em padrões como o ERC-20 no Ethereum e podem ser negociados em exchanges de criptomoedas.

Em linguagens de programação, um token é uma sequência de caracteres que representa um elemento da sintaxe da linguagem, como uma palavra-chave, um identificador, um operador, entre outros. Os tokens são geralmente gerados pelo compilador da linguagem como parte do processo de tradução do código fonte para código executável.

Esclarecimentos do envolvidos

As empresas envolvidas na operação foram procuradas para esclarecimentos. A proprietária do site respondeu algumas perguntas. Questionada sobre outros aspectos, informou que a pessoa responsável entrou em férias. O banco da montadora de tratores e colheitadeiras não se manifestou.

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