Produção de bioinsumos demanda boas práticas e segurança

Para embasar suas análises, os especialistas produziram artigo relembrando os problemas ocorridos até agora com a produção on-farm

19.11.2024 | 06:22 (UTC -3)
Leonardo Gottems, edição Revista Cultivar
Décio Luiz Gazzoni e Mariangela Hungria
Décio Luiz Gazzoni e Mariangela Hungria

A produção de bioinsumos deve ser acompanhada de Boas Práticas de Produção, com severas medidas de segurança. A afirmação é dos pesquisadores da Embrapa Soja Décio Luiz Gazzoni e Mariangela Hungria.

Eles afirmam que não são “contra a produção on-farm de bioinsumos”, mas que é necessário garantir que o agricultor tenha “acesso a produtos de qualidade, que respeitam normativas de recursos genéticos, ambiental, de segurança do trabalhador, sendo produzido sob responsabilidade técnica de profissional capacitado e comprovação da qualidade do produto final, que beneficie o próprio produtor, os consumidores e o meio ambiente”.

Para embasar suas análises, os especialistas produziram artigo relembrando os problemas ocorridos até agora com a produção on-farm – aquela na qual o próprio agricultor produz o seu insumo biológico na fazenda. Nas décadas de 1980 e 90, recordam eles, o Brasil dispôs do mais extenso programa de controle biológico de uma praga – a lagarta-da-soja, Anticarsia gemmatalis – em âmbito global, utilizando um vírus.

“Esse vírus é altamente contagioso e eficiente, dizima a população da praga, dispensando inseticidas químicos, sendo inócuo para insetos benéficos e para animais superiores. Entrementes, o programa foi vítima do seu próprio sucesso. Agricultores passaram a produzir o bioinseticida, coletando e conservando lagartas supostamente contaminadas pelo vírus, para aplicação na safra seguinte. Ao invés dos ótimos resultados anteriores, pipocaram relatos de ineficiência”, lembram.

A investigação do insucesso, explicam os pesquisadores, demonstrou “a péssima qualidade da produção própria. Nas palavras de um líder do programa: ‘havia tudo menos vírus nas amostras coletadas junto aos agricultores’. Um exagero, porque havia uma pequena proporção de vírus, mas insuficiente para controlar a praga. Essa foi uma das causas do final precoce de um programa que tinha tudo para ser um case mundial de sucesso, beneficiando agricultores, consumidores e o meio ambiente até hoje. Lição aprendida? Aparentemente, não”.

Quatro décadas se passaram e os bioinsumos tornaram-se uma tendência mundial, com o Brasil instituindo seu Programa Nacional de Bioinsumos (PNB). Tramitam na Câmara dos Deputados o PL 658/2021, que ratifica o PNB e dispõe sobre a classificação, o tratamento e a produção de bioinsumos por meio de produção própria (on-farm), e no Senado Federal o PL 3.668, que dispõe sobre a produção, o registro, comercialização, uso, destino final dos resíduos e embalagens, o registro, inspeção e fiscalização, a pesquisa e experimentação, e os incentivos à produção de bioinsumos para agricultura.

“A definição de bioinsumos adotada nas normativas é genérica e engloba mais de uma centena de possíveis produtos de origem vegetal, animal ou microbiana com ação em setores variados da agropecuária. Em relação a outros países, Argentina e Colômbia estão no mesmo patamar do Brasil, com programas de incentivo e normatização da matéria. Não há registros de programas similares nos EUA, onde vigora a produção comercial de bioinsumos seguindo a legislação genérica, ao contrário da Europa, onde o assunto é altamente regulado”, comparam os autores.

Recentemente a General Directorate of Health and Food Safety (DG Santé), que zela pela saúde pública e inocuidade dos alimentos na União Europeia, estudou os problemas ocasionados por microrganismos utilizados na agricultura, como Bacillus amyloliquefaciens e B. thuringiensis (Bt). Foram identificados impactos sobre a biodiversidade e contaminações em alimentos, o que também foi investigado no estudo de Bonis et al. (bit.ly/480IEKc).

Os cientistas afirmam que o Bt foi detectado em 49 episódios de doenças por contaminação alimentar na França (2007-2017). Em 19 deles, o Bt foi o único microrganismo detectado, tornando-o o agente causal mais provável. Mais de 50% dos isolados de Bt foram coletados em vegetais crus, em especial tomate (48%). Esse estudo, e a preocupação da DG Santé, demonstram que bioinsumos podem apresentar riscos elevados e devem ser produzidos e aplicados com as melhores técnicas e o máximo rigor.

Problemas da produção on-farm

No Brasil, relatos preocupantes com sérias consequências da produção on-farm crescem a cada dia. Os autores citam três exemplos ilustrativos. O primeiro é de levantamento da Embrapa Milho e Sorgo em MT e GO sobre a produção on-farm de B. Thuringiensis, o qual mostrou que a maioria das amostras não continha o Bt, mas proliferavam patógenos como Enterococcus faecalis e Acinetobacter baumannii, sendo este último considerado uma das mais sérias causas de infecções hospitalares, com resistência múltipla a antibióticos (bit.ly/3NCxgMu).

O segundo relato é de levantamento realizado pela Embrapa Soja com inoculantes (Bradyrhizobium e Azospirillum), coletados em cinco estados (RS, PR, SP, MT e BA), os microrganismos desejados não foram encontrados, com exceção de uma única amostra, em que estava presente Azospirillum, em baixa concentração.

“Cabe destacar que o sucesso da soja brasileira se deve em grande parte à contribuição do processo de fixação biológica do nitrogênio, realizada pelo Bradyrhizobium, ausente em todas as amostras produzidas on-farm. Por outro lado, nos inoculantes on-farm analisados havia alta contaminação por diversos outros microrganismos indesejados, sendo um terço deles com alta e múltipla resistência a antibióticos, caracterizando um enorme perigo à saúde pública”, pontuam.

Por fim, Décio Gazzoni e Mariangela Hungria apontam estudo conduzido no Vale do São Francisco com 12 amostras de cinco propriedades, detectou contaminação em 100% das amostras, 84% com coliformes totais, sendo 75% termotolerantes e 75% com Salmonella sp.

“Em síntese, os estudos mostram a probabilidade de baixa qualidade da produção de bioinsumos on-farm, além de riscos à saúde humana, que afetam diretamente o produtor e que podem conduzir a outros desdobramentos indesejáveis no mercado. O direito de produção própria solicitado por alguns setores agrícolas conflita com os direitos ao meio ambiente, à saúde humana e ao coletivo, se não houver a observância das Boas Práticas de Produção”, afirmam eles.

De acordo com os especialistas, é “praticamente impossível eliminar microrganismos introduzidos no solo e uma aplicação maciça de patógenos pode resultar em grandes problemas fitossanitários e impactos negativos no meio ambiente. Microrganismos não conhecem cercas, de modo que uma área vizinha poderá ser contaminada, ferindo o direito coletivo”.

“Os perigos da produção on-farm são ainda maiores ao preconizar que não seriam necessários assistência de profissional qualificado, controle de qualidade, licença ambiental e respeito à propriedade intelectual e industrial. Em relação a esses dois últimos itens, as implicações seriam de desestímulo à pesquisa por novos bioinsumos e no desinteresse em desenvolver ou introduzir inovações tecnológicas no Brasil, tanto por empresas privadas quanto por instituições públicas. Ou seja, poderia desestimular a atual adoção acelerada de bioinsumos, provocando um retorno aos insumos químicos tradicionais”, concluem os pesquisadores da Embrapa Soja.

A posição da indústria

A Abinbio (Associação Brasileira de Indústrias de Bioinsumos) é parceira da Embrapa e corrobora as preocupações dos pesquisadores com a qualidade e segurança dos insumos biológicos. Fernando Sousa, diretor de Sustentabilidade da ABINBIO reafirma a importância de produtos biológicos de qualidade, regulamentados e fiscalizados.

“Os produtos devem ser regulados e fiscalizados pelos três órgãos: Ministério da Agricultura (Mapa), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Eles garantem que esses biológicos não causem patogenicidade para os seres humanos. Tem uma série de bactérias que transmitem doenças para os seres humanos”, explica.

Sousa ressalta que, enquanto a Anvisa olha na perspectiva de toxicidade para o ser humano – para que não cause nenhum problema agudo na sociedade, o Ibama olha para as questões de equilíbrio do meio ambiente em marcadores importantes como pulga d'água, como a minhoca, como peixes, como roedores e pássaros. “Todo esse crivo vai ajudar justamente a gente garantir que o bioativo que está sendo introduzido no ambiente não vai causar redução de biodiversidade”, diz ele.

De acordo com o diretor da Abinbio, o Mapa tem a prerrogativa da a eficácia, ou seja, precisa garantir que esses produtos não sejam contaminados com outros bioativos. Também que estejam na concentração adequada, que consigam então controlar o patógeno ou a doença para qual foram criados e que o produtor pode ter segurança, a partir do atestado do mapa que esse produto vai gerar um nível de controle.

“Sem um devido controle do que está sendo produzido, dentro de um tanque de fermentação podem haver contaminantes patógenos para os seres humanos e para o meio ambiente, e que vão também causar eficácia no determinado alvo que o produtor está tendo dentro da propriedade. Então, um baixo controle pode colocar em prejuízo toda a construção do tema biológico futuro da agricultura brasileira”, conclui Fernando Sousa.

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