A guerra e os insumos agrícolas
Os principais nutrientes aplicados no País são potássio 38%, cálcio 33%, nitrogênio 29%
Em momentos de conflitos e tragédias, nenhuma imagem ou notícia supera o drama humano, a destruição de vidas, a interrupção de sonhos. O impacto imediato, súbito, devastador, comove o mundo e afronta a nossa humanidade. Principalmente quando não se enxerga a rota de saída, o resgate da normalidade.
Nos destroços de almas e edifícios na Ucrânia não existe esta visão. Vislumbra-se o choque -- e nada mais. À medida em que o diálogo fracassa, passamos a entender que a dor que hoje é local se estenderá ao resto do mundo por meio da escassez e a elevação de preços de alimentos e de combustíveis, entre outros impactos diretos e indiretos. Insegurança é a palavra que une a todos, em diferentes formas. Onde não há bombas, será crescente o risco da fome.
Nas imagens que nos chegam da Ucrânia, vê-se tropas e pessoas se deslocando por paisagens com solo descoberto, a neve branca se abrindo para uma terra escura. Grandes áreas planas à espera de sementes que não virão. Tanques no lugar de máquinas agrícolas. Não há como plantar e, assim, não haverá o que colher em uma das regiões agrícolas mais férteis do planeta. Nesse sentido, culturas como o girassol, em que a Ucrânia é líder global de produção, já estão comprometidas. Outras, como a cevada e o trigo, em que as sementes são lançadas antes do inverno e ficam dormentes sob o gelo para brotarem na primavera, também devem contar com perdas significativas, já que o manejo das lavouras também não deve ocorrer de forma minimamente desejável.
Qual o tamanho das perdas? Impossível calcular por enquanto. O que se sabe é que não será pequeno e resultará em uma oferta significantemente menor dessas commodities ao redor do mundo.
Ainda que o conflito cesse em um prazo curto, a debacle nas estruturas de produção e logística na Ucrânia e na Rússia (afetada pelas sanções impostas internacionalmente) acionou gatilhos protecionistas em outros países, que já manifestaram sua intenção de restringir as exportações de commodities agrícolas para evitar o desabastecimento interno. Indonésia, Argentina e Hungria, por exemplo, estão entre os pioneiros a adotar medidas de protecionismo alimentar.
A situação da Indonésia explica bem o impacto desse tipo de ação. Maior exportador mundial de óleos comestíveis (sobretudo o de palma), o país decretou que uma cota de 30% dos volumes embarcados para o exterior deve ser destinada ao mercado local. É 20% a mais do que o previsto até antes da guerra na Ucrânia. A decisão fez com que a cotação do óleo de palma no mercado internacional subisse 13%, atingindo um novo recorde histórico.
Desde a eclosão do conflito, o governo brasileiro tem optado por um discurso de neutralidade. Embora tenha votado a favor de moções da Organização das Nações Unidas que reprovam a invasão do território ucraniano por forças russas, o Brasil manifestou-se contrário à adoção de sanções que afetam a realização de negócios com empresas da Rússia.
Uma das razões apontadas para esse posicionamento seria, na visão de muitos, a influência de entidades e parlamentares que representam agricultores brasileiros, preocupados com o abastecimento de fertilizantes no mercado brasileiro. O país importa 85% dos fertilizantes utilizados em nossas lavouras e a Rússia seria responsável por cerca de 30% desse fornecimento.
A preocupação é evidente e justificada, portanto. Os preços dos insumos agrícolas já viviam um processo de alta, provocada pela demanda excessiva no mercado global, bem antes de os primeiros disparos serem dados na Ucrânia. O acirramento do conflito e o bloqueio dos fluxos logísticos e financeiros agravaram ainda mais o quadro, fazendo prever escassez de fertilizantes e, assim, uma disputa maior pelo insumo disponível -- o que resultará, certamente, numa elevação ainda maior dos preços.
O que não se justificaria, porém, seria tomar uma posição que agrade a Rússia para defender o fornecimento de fertilizantes, mas que ao mesmo tempo desagrada aos países da União Europeia, que em bloco são um dos maiores compradores de produtos agrícolas brasileiros. Analisando números, verifica-se que a opção seria ilógica: os negócios agrícolas com a Rússia totalizaram, em 2021, cerca de US$ 7,2 bilhões, sendo deficitária para o Brasil em US$ 4,1 bilhões. Já com a União Europeia, o valor total exportado em 2021 teve um aumento de 32%, sendo que apenas quatro dos 28 países do bloco, compraram mais de US$ 6,3 bilhões em produtos agrícolas brasileiros.
Interesses comerciais são parte importante na definição de políticas de relações diplomáticas. Não são, entretanto, fator prioritário ou único na tomada de decisões. Se a questão dos fertilizantes é importante para o agronegócio brasileiro, também são fundamentais para as nossas vendas externas assuntos como a preservação da Amazônia ou as relações com a China, de longe a maior parceira do agronegócio brasileiro, com mais de US$ 34 bilhões em vendas para eles em 2021. Nem por isso, porém, esses temas têm pautado as decisões do governo brasileiro.
Não é improvável que questões ambientais sejam postas à mesa, por exemplo, em uma eventual discussão de parceria com governos e empresas com os quais o Brasil busque alternativas aos fertilizantes que podem deixar de vir da Rússia ou de Belarus. O Canadá -- maior produtor de potássio do mundo, com que a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, já iniciou conversações -- é um dos mais ativos em debates sobre a urgência da descarbonização da economia global. Outra opção de fornecedor seria a própria China, que indica disposição em preservar para si a maior parte da produção, já que tem projetos para a expansão agrícola em seu próprio território.
Paralelamente às opções externas, a crise global provocada pela situação ucraniana revelou a urgência de uma revisão da estratégia brasileira em busca de uma redução da dependência internacional de fertilizantes minerais. Não há solução de curto prazo, mas a dimensão do problema demonstra que não há tempo a perder ou uma bala de prata disponível para resolver a questão. É preciso avaliar todas as alternativas disponíveis e investir em várias delas.
A primeira e mais óbvia seria a ampliação da produção local desses fertilizantes. Não é, de forma alguma, algo simples, mas com investimentos feitos de forma adequada e estratégica, seria possível garantir, por exemplo, todo o potássio consumido no Brasil nas próximas décadas.
Melhor ainda: levantamentos demonstram que mais de dois terços das reservas a serem exploradas estão fora da área da Amazônia Legal e nenhuma estaria dentro de terras indígenas homologadas. Com isso, além de ficar mais fácil obter licenças ambientais e de se evitar mudanças na legislação brasileira, também a imagem do agronegócio brasileira seria preservada.
O plano nacional de fertilizantes, que o governo pretende lançar até o fim deste mês, deve levar em consideração dados como esses, sem perder de vista que do levantamento à produção são necessários muito tempo e grande volume de recursos. A própria indicação de que o plano terá como objetivo reduzir em até 85% a dependência externa em 30 anos demonstra isso.
Em outras frentes, a emergência leva a uma mobilização que pode trazer aspectos positivos. A Embrapa, por exemplo, vai utilizar sua capacidade de organizar caravanas temáticas para promover uma campanha em torno da racionalização do uso de fertilizantes, sempre baseada em conhecimento técnico. O objetivo é ajudar os agricultores a economizarem cerca de US$ 1 bilhão em fertilizantes.
Da mesma forma, a busca de opções pode levar à aceleração do desenvolvimento de soluções que ficaram adormecidas ou eram economicamente pouco interessantes em tempos de abundância de fertilizantes minerais. A rochagem, por exemplo, é uma delas. O processo prevê a transformação de resíduos da mineração em substitutos ao potássio -- em alguns casos com vantagens na sua incorporação ao solo. Com isso, a vantagem seria dupla: ajudaria a resolver um problema ambiental da mineração e contribuiria para o aumento da produtividade nas lavouras. O desafio aqui seria dar escala ao processo de rochagem, de forma a atender maiores fatias do mercado de fertilizantes.
Agricultura regenerativa, rotação de culturas e técnicas para fixação de nitrogênio no solo, hidrogênio verde, fertirrigação com aproveitamento de materiais orgânicos resultantes de atividades agropecuárias... É hora de olhar para o todo e enxergar como ser ainda mais responsável com a gestão dos nossos recursos naturais. Os novos tempos exigem mais de todos nós.
Por Aline Locks, CEO da Produzindo Certo
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