Novos antibióticos e seu uso no controle do cancro cítrico

O Brasil é o maior produtor de laranja doce do mundo, com safra estimada para 2017/2018 de 364,47 milhões de caixas de 40,8 kg (Fundecitrus). Em comparação, produzimos quase 6 vezes mais que o estado da Flórida (EUA), se

29.05.2017 | 20:59 (UTC -3)

A citricultura é considerada uma das principais atividades econômicas brasileiras, gerando receita na ordem de US$ 2 bilhões/ano em exportação de suco (Neves et al, 2010). O suco brasileiro representa mais de 80% do produto consumido no mundo, e o estado de São Paulo é responsável por aproximadamente 80% da produção de laranjas brasileiras.

Este sucesso notável poderia ser ampliado caso a citricultura brasileira conseguisse resolver problemas sérios relativos à irrigação, pobreza de solos, pragas e doenças que acarretam flutuações de produção. Das doenças que acometem os citros, duas têm causado grande preocupação: o cancro cítrico e o HLB (huanglongbing/greening), causadas pelas bactérias Xanthomonas citri subsp. citri (X. citri) e Candidatus Liberibacter asiaticus/americanos, respectivamente. O HLB é sem dúvida uma doença grave no momento, por sua altíssima incidência nos pomares e pela inexistência de plantas resistentes ou cura. O cancro cítrico, no entanto, tem força. Está entre nós desde 1957, quando foi primeiramente detectado na região de Presidente Prudente. É uma doença severa que acomete todas as espécies e variedades de citros de interesse econômico (Gottwald et al, 2002).

X. citri não é disseminada por insetos vetores, como no HLB, e a principal forma de contágio ocorre planta-a-planta, pela ação combinada de chuvas e ventos e contato mediado pelo homem. A infecção ocorre mediante entrada da bactéria por aberturas naturais e ferimentos causados por quebras de ramos ou quando larvas de insetos se alimentam das folhas (ex.: minadora dos citros; Phyllocnistis citrella). Uma vez dentro do tecido vegetal, a bactéria induz sintomas típicos que culminam no aparecimento de lesões eruptivas amarronzadas. Dependendo da severidade da doença, promove a desfolha, queda prematura de frutos e até morte da planta.

O cancro cítrico não tem cura e a forma mais eficaz de controle é a eliminação da planta sintomática e de suas vizinhas (erradicação). Tal prática foi a norma em São Paulo entre 1999-2009 e manteve a sanidade dos pomares paulistas com índices de doença bem abaixo de 1% (Fundecitrus). Neste período, se a incidência de doença no pomar atingisse 0.5%, o talhão inteiro deveria ser eliminado. Entretanto, a partir de 2009, questões diversas levaram ao abrandamento da legislação e, como consequência, o cancro apresentou uma escalada sem precedentes nos anos a seguir. Em março de 2017 entrou em vigor a Normativa 37 do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA), permitindo ao produtor fazer um plano de mitigação da doença. Agora, a maior área de produção de laranjas do mundo, o Estado de São Paulo, terá a bactéria em condição endêmica, como já acontece nos estados mais ao sul do Brasil, Argentina e Flórida. Como controle em um sistema de mitigação, recomenda-se o plantio de laranjeiras mais resistentes ao cancro (lembrando que resistência total não existe), o uso de barreiras verdes para minimizar a disseminação da bactéria por ação de chuvas e ventos e o uso massivo de formulações cúpricas.

O cobre, em associação com as demais práticas de manejo, tem apresentado eficiência no controle do cancro. Entretanto, seu uso excessivo apresenta o risco de contaminação do ambiente em diversos níveis, criando assim a necessidade de se buscar antimicrobianos alternativos capazes de atingir X. citri e que apresentem necessariamente menor impacto ambiental com seu uso.

No início de 2010, o Professor Henrique Ferreira, do Laboratório de Genética de Bactérias (LGB), logo após as mudanças de legislação que levaram ao aumento da incidência da doença, iniciou projeto com sua aluna de doutorado Isabel Cristiane da Silva, buscando alternativas ao uso do cobre, com apoio da FAPESP.

Como um dos focos de pesquisa do LGB (Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Araraquara/Unesp, 2010-2012; Instituto de Biociências de Rio Claro, IBRC/Unesp, 2013-presente) era divisão celular de X. citri, pensamos: “seria possível controlar X. citri com compostos que perturbassem sua divisão?” Munidos de várias estruturas químicas de compostos inibidores de divisão celular bacteriana encontrados na literatura, testados contra outras bactérias e nenhum em uso comercial, o Prof. Ferreira e Isabel procuraram o Farmacêutico Dr. Luis Octavio Regasini. Perguntamos se ele teria algo semelhante àquelas moléculas que pudéssemos testar contra X. citri.

Dr. Regasini, hoje Professor e coordenador do Laboratório de Química Verde e Medicinal (LQVM) do IBILCE, Unesp, Câmpus de São José do Rio Preto, retornou dezenas de compostos que foram testados pelo grupo do Prof. Ferreira e, para nossa surpresa, 40% foram capazes de matar a bactéria. A série dos ésteres de ácido gálico (galatos de alquila) especialmente nos chamou atenção por sua grande atividade, que foi relatada em Silva et al (2013).

Preparação dos Galatos de Alquila
Em 2013 Prof. Regasini iniciou o planejamento de novos ésteres utilizando a ferramenta de latenciação, mais comum no desenvolvimento de produtos farmacêuticos que agroquímicos. Essa ferramenta de modificação molecular produz compostos mais hábeis na transposição das barreiras celulares vegetais ou animais, concentrando o composto no interior das células. A tarefa de síntese dos ésteres de galato de alquila ficou a cargo do químico Carlos Roberto Polaquini, aluno de pós-graduação em Química do IBILCE/Unesp, sendo realizada no LQVM, em São José do Rio Preto, que possui a infraestrutura para a síntese, purificação e análise de compostos bioativos.

Os compostos foram preparados em poucas etapas, com rendimentos satisfatórios, e utilizando alguns princípios de sustentabilidade em Química, os chamados “12 Princípios da Química Verde”. Buscou-se a preparação em escala laboratorial com a produção de resíduos reduzida, os quais poderiam ser mais danosos que a própria ação dos compostos sobre o ambiente.

Foram sintetizados, aproximadamente, 100 novos ésteres na escala de miligramas, o que exigiu muitos esforços do LQVM. Após a seleção dos mais ativos, hoje o grupo concentra-se na síntese na escala de gramas, a qual permitirá avanços dos ensaios de campo, facilitando o patenteamento e interesse pela indústria de química fina da área de agroquímicos. Felizmente, um dos ésteres mais ativos foram produzidos em escala superior a 50 gramas.

Mecanismos de ação dos Galatos de Alquila: A maquinaria de divisão celular como alvo para antibacterianos
No laboratório do Prof. Ferreira, LGB, foram feitos os primeiros testes para identificar os antibacterianos capazes de matar X. citri , através de ensaios metabólicos. Após a exposição aos compostos, a capacidade da bactéria de respirar foi avaliada e aqueles que comprovadamente provocaram morte celular foram selecionados para ter seu mecanismo de ação investigado.

No combate às doenças é desejável o uso de compostos, os chamados antibióticos, que matem seletivamente as bactérias e que sejam pouco danosos aos seres humanos, animais e plantas. O antibiótico ideal deve ter como alvo moléculas ou vias bioquímicas que sejam exclusivas de bactéria, como é o caso da penicilina, primeiro antibiótico a ser descoberto. A penicilina atua na parede celular bacteriana, estrutura composta por moléculas que não ocorrem em plantas e animais. Outro alvo de interesse é a 'maquinaria de divisão celular'. A maquinaria usada pela bactéria é fundamentalmente diferente das utilizadas por plantas e animais. Se a divisão for interrompida, a infecção é contida e a bactéria morre.

No LGB construímos, por manipulação genética, as células de X. citri utilizadas para desvendar os mecanismos e
alvos de ação dos antimicrobianos. Em microscopia óptica e de fluorescência é possível identificar, por exemplo, o comprometimento da membrana, que resulta em extravasamento de conteúdo celular e morte. O aumento de tamanho da bactéria, característica comum de células crescendo e incapazes de se dividir, indica ação na divisão. Finalmente, é possível identificar diretamente a interferência de compostos em estruturas ou proteínas intracelulares marcadas com fluoróforos: caso um composto atue em divisão celular, ele poderá destruir o septo divisional necessário para que o processo de divisão celular ocorra.

Dentre as proteínas essenciais para divisão celular e que são exclusivas de bactérias, a mais abundante é FtsZ, que forma um anel ao redor da bactéria no local da divisão antes que esta ocorra. O anel de FtsZ é a estrutura na qual a maquinaria de divisão é montada e que, ao final do processo, forma uma constrição separando as duas células-filhas. As células bacterianas tratadas com os galatos de alquila têm dificuldade em se dividir e por isso pensamos que FtsZ seria um provável alvo para os compostos. Para comprovar isto, contatamos o Professor Dirk-Jan Scheffers da Universidade de Groningen, Holanda.

Prof. Scheffers, atual integrante de nosso grupo de pesquisa com financiamento FAPESP e da agência Holandesa NWO, recebeu Isabel por um período de um ano, onde estudamos a interação dos galatos de alquila com a proteína FtsZ. Estudamos os efeitos dos galatos em moléculas isoladas de FtsZ provenientes de dois tipos diferentes de bactérias, Bacillus subtilis (bactéria modelo para estudo de Gram-positivos) e X. citri. No laboratório de Groningen, usamos um conjunto de experimentos que nos permite estudar se FtsZ ainda pode formar anéis e se estes anéis ainda são capazes de formar constrições. Descobrimos que os galatos afetam intensamente a atividade de FtsZ, mas não o suficiente para explicar todos os efeitos observados. Identificamos que outros mecanismos também são usados pelos galatos para matar as bactérias. Eles criam pequenos buracos na membrana das bactérias e o vazamento resultante de nutrientes e energia efetivamente leva à morte da célula (Krol et al, 2015).

Esta dupla função pode ser muito útil na prevenção e tratamento de doenças em plantas. O tratamento de plantas resulta na liberação do composto diretamente no ambiente, apresentando o risco da bactéria desenvolver resistência contra ele – até então, bactérias resistentes têm surgido para cada antibiótico usado em clínica. Entretanto, ao atingir mais de um alvo ao mesmo tempo, torna-se mais difícil para a bactéria desenvolver resistência através de mutações.

Segurança de uso dos galatos de alquila
Antes que levássemos adiante a ideia do uso dos galatos de alquila como defensivos agrícolas, precisávamos estudar os seus efeitos e entender mais sobre sua segurança toxicológica. Nesta frente, contamos com o apoio do colaborador Professor Fernando Pavan da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Araraquara/UNESP, que possui a infraestrutura para realizar ensaios pré-clínicos na descoberta de novas moléculas.

Em 2014, Prof. Pavan recebeu Dra. Isabel, agora pós-doc dentro do projeto de colaboração bilateral FAPESP/Brasil-NWO/Holanda coordenado pelo Prof. Ferreira, para estudar os efeitos toxicológicos dos galatos de alquila in vitro. Estudos de citotoxicidade, apoptose/necrose, mutagenicidade e quimioprevenção foram realizados e os resultados foram mais do que satisfatórios. Foi possível concluir que além dessas moléculas garantirem uma segurança toxicológica para o ser humano, elas também apresentaram um efeito quimiopreventivo, ou seja, reverteram os efeitos mutagênicos induzidos em laboratório (Silva et al, 2017).

Testes iniciais de proteção de plantas foram muito promissores, pois os galatos, quando aspergidos em folhas de laranjeira, bloquearam a infecção por X. citri (Fig. 8), com a vantagem de ser um composto de menor impacto ambiental e que apresenta características positivas para a saúde humana/animal. Atualmente estamos trabalhando para que o esforço conjunto destas colaborações se concretize em soluções para a citricultura brasileira e em retorno à sociedade na forma de 'preservação' ambiental.

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