A crise da soja no RS em um clima em transformação
Por Rogério de S. Nóia-Júnior (Inrae) e Bruno Fardim Christo (Veriees)
01.10.2025 | 14:49 (UTC -3)
Rogério de S. Nóia-Júnior e Bruno Fardim Christo
Nos últimos anos, os produtores rurais do sul do Brasil têm enfrentado uma sequência de desafios sem precedentes. Estiagens severas durante a safra de soja, como as de 2020, 2022, 2023 e 2025, têm sido intercaladas por enchentes devastadoras, como a ocorrida em maio de 2024, quando mais de 500 mm de chuva caíram em apenas alguns dias. Essas anomalias climáticas têm causado perdas expressivas na produção de grãos, afetando não apenas a renda dos agricultores, mas também a estabilidade econômica da região.
O estado do Rio Grande do Sul, tradicional produtor de grãos, responde por cerca de 13% da produção nacional e aproximadamente 5% das exportações mundiais de soja. No entanto, essa posição estratégica está ameaçada por mudanças climáticas que vêm alterando a frequência e a intensidade dos eventos extremos.
Perdas recorrentes na produção e nas finanças
Nos últimos seis anos, quatro safras de soja colhidas em 2020, 2022, 2023 e 2025 apresentaram produtividade abaixo ou próxima de 2.000 kg/ha (Figura 1c). Este é um patamar alarmante, considerando o histórico médio de 2.700 kg/ha desde 1997. Estudos científicos indicam que o estado possui potencial produtivo médio, em sistemas de sequeiro, superior a 3.200 kg/ha. Mesmo com a ampliação da área cultivada, que chegou a 6,8 milhões de hectares em 2025, a produção estadual tem sido equivalente à registrada na década de 2000, quando a área era menos da metade.
O custo de produção disparou, passando de R$ 2.870/ha em 2020 para R$ 8.282/ha em 2022, pressionando ainda mais as margens dos produtores (Figura 1a). Por exemplo, até 2020, um produtor gaúcho precisava, em média, colher cerca de 2.138 kg/ha para cobrir os custos totais. Esse valor caiu para 1.182 kg/ha em 2021, devido ao elevado preço da soja, próximo a R$ 170 por saca, cultivada ainda com baixos custos. Desde 2022, o mínimo requerido para cobrir os custos tem sido, em média, de 2.750 kg/ha (Figura 1c).
Mesmo com os preços recordes registrados nas últimas safras no mercado internacional (Figura 1b), os custos aumentaram mais rapidamente, resultando em prejuízos líquidos. Desde 2022, os agricultores gaúchos enfrentam déficits crescentes. Foram R$ 23 bilhões em 2022, R$ 17 bilhões em 2023, R$ 4,7 bilhões em 2024 e R$ 1,5 bilhão em 2025. Trata-se de uma crise econômica que coloca milhares de produtores à beira da insolvência.
Figura 1: indicadores econômicos e produtivos de soja no Rio Grande do Sul entre 1999 e 2025; (a) Custo de produção (R$/ha); (b) Preço da soja (R$/60 kg); (c) Produtividade média obtida (linha preta contínua) e produtividade mínima necessária para cobrir os custos (linha tracejada amarela), expressas em kg/ha; (d) Margem líquida total anual estimada para o estado (em bilhões de reais), calculada com base na diferença entre receita e custo total da produção
O clima está mudando, e isso é só o começo
Dados históricos mostram que a temperatura média entre outubro e maio no Rio Grande do Sul era de 21,3 graus Celsius, com uma média de 1.187 milímetros de chuva durante o ciclo da soja. No entanto, desde 2018, as temperaturas têm superado consistentemente essa média, enquanto os volumes de chuva caíram drasticamente. Em 2023, por exemplo, a precipitação foi 510 milímetros abaixo do normal, representando quase 50% de déficit.
Projeções futuras indicam que, até 2100, a temperatura média pode aumentar até 3 graus Celsius. A variabilidade da precipitação também tende a crescer. Isso significa que podemos esperar anos mais secos, mais quentes e, ao mesmo tempo, episódios de chuva extrema mais frequentes, como os que já devastaram a produção de trigo em 2023 e a soja em 2024.
O aumento da temperatura eleva a evapotranspiração, dificulta o armazenamento de água no solo e torna os cultivos mais vulneráveis a estresses combinados. Esses estresses incluem calor, seca, excesso de água e doenças, como a brusone do trigo, que tende a se intensificar com o aquecimento global.
Estamos nos aproximando de um ponto de não retorno
No sistema climático, os chamados pontos de inflexão são momentos em que mudanças se tornam irreversíveis. Algo semelhante está ocorrendo com os agricultores no Rio Grande do Sul. Quando as receitas da produção não cobrem os custos por vários anos seguidos, o produtor atinge seu próprio ponto de inflexão. Ele perde capacidade de investimento, se endivida e, eventualmente, pode abandonar a atividade.
É isso que está acontecendo no Rio Grande do Sul. A continuidade dessa sequência de desastres climáticos, sem ações de adaptação, pode levar ao colapso da agricultura na região. Se nenhuma medida for tomada, esse cenário tende a se repetir em outras regiões do Brasil nas próximas décadas.
Para evitar o colapso, não existe solução única. Um conjunto de medidas pode ajudar a construir um sistema agrícola mais resiliente:
• Seguros agrícolas acessíveis. É essencial ampliar o acesso ao seguro rural para cobrir eventos extremos e permitir que os agricultores se recuperem financeiramente de safras ruins.
• Crédito rural com juros reduzidos. Linhas de financiamento com juros baixos ou subsidiados são fundamentais para a recuperação, mesmo que não representem solução suficiente no médio prazo.
• Capacitação e extensão rural. A promoção de treinamentos sobre práticas sustentáveis, manejo de solo e água, diversificação de cultivos, controle biológico e rotação de culturas pode fortalecer a resiliência dos sistemas produtivos.
• Infraestrutura rural. Melhorias no armazenamento de grãos fortalecem o poder de negociação dos produtores. Investimentos em estradas e, respeitando os limites do uso sustentável da água, em sistemas de irrigação e drenagem, podem reduzir perdas e aumentar a eficiência produtiva.
• Tecnologia no campo. O uso de sensores remotos, drones e softwares de monitoramento pode otimizar insumos, reduzir desperdícios e qualificar a tomada de decisão.
• Melhoramento genético. É necessário investir no desenvolvimento de cultivares mais resistentes à seca, ao calor e às doenças, capazes de suportar as novas condições climáticas.
• Repensar o sistema. Pesquisas com novas culturas mais adaptadas a essas condições, bem como em ambientes totalmente controlados, mesmo que ainda muito custosos, têm mostrado potencial para elevar a produtividade de grãos. Essas alternativas devem ser estrategicamente consideradas por formuladores de políticas públicas e pesquisadores.
Essas ações precisam ser acompanhadas por políticas públicas voltadas à mitigação das mudanças climáticas. Entre elas estão a redução do desmatamento, o aumento da cobertura vegetal, a preservação da matéria orgânica dos solos e a diminuição das emissões de gases de efeito estufa.
A agricultura no sul do Brasil está enfrentando um de seus maiores desafios. Estiagens severas, enchentes e custos crescentes fragilizam economicamente os produtores e comprometem a segurança alimentar. Esses eventos não podem mais ser tratados como exceções. Eles já fazem parte de uma nova realidade climática. A resposta precisa reunir agricultores, técnicos, pesquisadores, governos e empresas. Com planejamento, inovação e políticas públicas eficazes, ainda é possível evitar o colapso e garantir um futuro sustentável para o campo brasileiro.
*Por Rogério de S. Nóia-Júnior (Inrae) e Bruno Fardim Christo (Veriees)
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