Medidas de manejo de raquitismo-das-soqueiras em cana

Evitar ingresso da bactéria nos talhões é principal alternativa, já que não há transmissão por inseto-vetor, sobrevivência no solo ou registro de qualquer outro hospedeiro

30.11.2020 | 20:59 (UTC -3)
Cultivar Grandes Culturas

A cultura da cana-de-açúcar é uma das mais dinâmicas do agronegócio brasileiro e, possivelmente, a mais importante contribuição do Brasil no esforço mundial de mitigação do efeito estufa, seja pela substituição do combustível fóssil na indústria automotiva, seja na geração de bioenergia elétrica especialmente importante, pois o início da colheita da cana coincide com o início da estiagem e a necessidade de economia de água das hidroelétricas.

A importância da cana dentro da agricultura brasileira pode ser observada pelo crescente aumento de sua produção, que em 2005-06 foi de 431,4 milhões, com um salto para 615,8 milhões em 2018-19. No entanto, a cultura tem um desafio enorme pela frente, pois uma análise mais detalhada revela que o aumento da produção vem sendo obtido pelo crescimento da área de plantio, 5,8 milhões de hectares em 2005-06 e 8,6 milhões em 2018-19; a produtividade tem se mantido praticamente estável, ao redor de 70ton/ha, variando de 74,3ton/ha em 2005-06 a 71,3ton/ha em 2018-19.

Muitos fatores bióticos e abióticos influenciam na produtividade da cana-de-açúcar, e a identificação de cada um desses aspectos não é uma tarefa fácil, pois depende do sistema de manejo de cada unidade produtiva. Independentemente dessa dificuldade, no entanto, é possível inferir que o raquitismo-das-soqueiras, causado pela bactéria Leifsonia xyli subsp. xyli, é um das responsáveis pela estagnação da produtividade do setor produtivo como um todo, produtividade essa que se mantém estável há mais de 20 anos, apesar da incorporação constante das mais modernas tecnologias e lançamento de variedades com potencial produtivo cada vez maior. Algumas das razões que levam a acreditar na importância da doença para o setor canavieiro nacional incluem dados científicos obtidos ao longo de vários anos por diferentes países, já que pouca informação está disponível no Brasil: na África do Sul foi registrada quebra de até 15% na produção, na Austrália de até 14%, nos Estados Unidos foi de até 32%, em Fiji foi de 29% e na Etiópia de até 28%. Um dos poucos dados científicos que estão disponíveis para o Brasil mostrou uma redução de 26,22% na variedade RB867515 quando se comparou o peso médio em três cortes entre canas da parcela infectada com a bactéria e a sadia. Um estudo com três variedades que não são mais cultivadas mostrou uma produção média superior de 22% das canas tratadas termicamente para o controle do raquitismo.

Figuras 1 e 2 - Durante o desenvolvimento vegetativo não é possível a identificação de plantas doentes, padrão que se repete com 100 dias de campo
Figuras 1 e 2 - Durante o desenvolvimento vegetativo não é possível a identificação de plantas doentes, padrão que se repete com 100 dias de campo

Outro dado preocupante sobre o raquitismo-das-soqueiras no Brasil foi revelado pelo levantamento de 2012-13, que mostrou que 10% dos 1.154 talhões das 50 usinas avaliadas da região Centro-Sul foram positivos e que 9,4% dos talhões de cana-planta estavam infectados, mostrando que mudas contaminadas foram empregadas na formação do canavial.

Uma das recomendações mais importantes para o controle da doença é a exclusão, que nada mais é que o impedimento da entrada da bactéria num talhão de cana-de-açúcar. Essa recomendação é de extrema importância porque a bactéria não é transmitida por inseto-vetor, não sobrevive no solo e não tem nenhum outro hospedeiro além da cana. Assim, a única maneira de a doença ser introduzida em uma área de reforma é pelo plantio de materiais propagativos contaminados pela bactéria.

Embora a utilização de mudas pré-brotadas esteja se disseminando como meio de produção de matéria-prima para reforma de canavial, o uso de materiais propagativos próprios ainda é uma prática bastante comum. Para esse último, a recomendação é que exame de sanidade quanto ao raquitismo seja realizado para assegurar que os materiais propagativos a serem empregados na reforma do canavial estejam sadios.

O presente artigo tem o objetivo de levar ao conhecimento do setor produtivo canavieiro os novos dados de incidência de raquitismo-das-soqueiras em talhões selecionados para fornecer mudas para a reforma de canavial. Esses resultados são uma compilação dos testes diagnósticos para a doença realizados pelo método sorológico de “dot blot” pelo Laboratório de Genética Molecular da Universidade Federal de São Carlos, durante um período de seis anos (2013-2018) e que foram recentemente publicados na revista científica Crop Protection, onde uma discussão mais detalhada desse estudo pode ser encontrada.  

O primeiro dado importante a ser ressaltado é que o raquitismo-das-soqueiras foi identificado em 518 dos 1.431 talhões avaliados durante 2013 a 2018, ou seja, 40,2% dos talhões analisados estavam contaminados com a doença (Tabela 1). Uma análise mais detalhada foi feita empregando-se a incidência da doença ao longo dos anos, pois o número de talhões amostrados variou muito no período, portanto a porcentagem de talhões doentes com raquitismo-das-soqueiras foi o parâmetro adequando. Quando essa avaliação foi feita, verificou-se que houve um aumento crescente da incidência de raquitismo ao longo do período avaliado, 2013 tendo a menor incidência, com 20,5% dos talhões, e 2018 com uma explosão, atingindo 86,7%. Esse dado é assustador, pois mostra um aumento constante da doença e que em 2018, a quase totalidade dos talhões reformados já estaria com raquitismo, caso a reforma do talhão fosse feita com material propagativo coletado dos talhões enviados para exame diagnóstico em laboratório. Importante ressaltar aqui o quão difícil é a identificação dessa doença no campo, visto que ela não apresenta sintomas característicos, que somente pode ser feita com segurança através de exame laboratorial. A ausência dos sintomas é uma das características que mais dificultam o seu controle e uma das principais causas para a disseminação silenciosa nas unidades produtivas.

Uma outra análise enfocou a distribuição da bactéria causadora do raquitismo-das-soqueiras em cada uma das cinco variedades mais empregadas na reforma de canaviais (Tabela 2). O número total de talhões analisados foi de 1.431, sendo que os das variedades RB867515 e RB966928 correspondeu a 65,8% do total, demonstrando a popularidade dessas duas variedades para áreas de reforma de canavial. O nível de incidência de raquitismo-das-soqueiras nessas duas variedades foi de 35%, muito próximo da média geral no período. Como os melhores talhões de uma unidade produtora são os escolhidos para fornecerem materiais propagativos e, portanto, são os que foram analisados, esses números sugerem que a incidência do raquitismo na propriedade pode estar ainda maior se forem considerados talhões não selecionados. Com relação às outras variedades, RB855156 se destacou por apresentar o menor nível de doença entre todas, com 27,3% dos talhões, enquanto CTC4 apresentou maior nível, com 49,3%.

Após essa visão mais geral, estudo mais detalhado foi realizado através da observação da incidência de raquitismo em cada variedade ao longo dos anos e também pela distribuição interna da doença dentro de cada talhão. Isso porque o fato de um talhão ser positivo para raquitismo não permite elucidar quantos toletes dentro desse talhão foram positivos, se um ou 99. Como o exame diagnóstico de “dot blot” é realizado empregando-se seivas de 100 toletes, a distribuição do raquitismo-das-soqueiras dentro do talhão foi feita pela porcentagem de toletes positivos dentro do talhão. Quanto menor for a contaminação interna, mais demorada vai ser a transmissão da doença para todas as touceiras do talhão, pois um tolete contaminado pode transmitir a doença por até 13m de distância pelas lâminas da colheitadeira; quanto mais toletes doentes existir, mais fontes de inóculo da doença vai haver e mais rapidamente todo o talhão estará doente. Assim, a queda na produtividade vai ser mais acentuada quanto mais o raquitismo-das-soqueiras estiver disseminado dentro de um talhão.

A análise da incidência de raquitismo-das-soqueiras em cada variedade e também dentro de cada talhão doente foi realizada ao longo dos seis anos (Tabela 3). O primeiro dado que chamou a atenção foi o aumento assustador da incidência de raquitismo-das-soqueiras, que já havia sido observado na compilação geral (Tabela 1), mas também se repetiu nas variedades, ou seja, a maior incidência da doença ocorreu no último ano do estudo (2018) em quatro das cinco variedades, com porcentagem variando entre 91,8% (RB966928) e 72,7% (CTC4). A exceção foi CTC4, que mostrou alta porcentagem de raquitismo-das-soqueiras em todos os anos do período; a RB92579 também teve essa característica preocupante. CTC4 foi uma das variedades que mais cresceram na preferência para reforma de canavial, tinha 7,7% de participação geral em 2015 e saltou para 14,3% em 2018-19. Esse dado é preocupante, pois a recomendação de descarte do talhão todo para uso em reforma de canavial quando da detecção de algum tolete positivo pode não ter sido seguida devido à necessidade de grande quantidade de material propagativo necessária nessa expansão. Infelizmente, o uso de tratamento térmico dentro das usinas para a eliminação da bactéria em toletes contaminados não tem sido adotado.

Dificuldade de identificação de plantas doentes no campo mostra a dimensão do problema
Dificuldade de identificação de plantas doentes no campo mostra a dimensão do problema

Os dados da porcentagem de incidência de raquitismo-das-soqueiras dentro de um talhão podem sugerir que o plantio de material propagativo doente foi utilizado em muitas situações. Isso se a recomendação de uso de cana-planta, e não de outros cortes, tiver sido seguida. É recomendado que os materiais propagativos para reforma de canavial sejam de cana-planta, pois o uso de colheitadeiras dissemina a doença. Assim, se um talhão de cana-planta apresentar raquitismo antes da primeira colheita pode-se deduzir que material propagativo contaminado foi empregado na reforma do canavial. Em termos de estratégia de manejo do raquitismo-das-soqueiras, a análise diagnóstica em talhões de cana-planta avalia a sanidade do material empregado em áreas de reforma e o exame desse mesmo talhão no último corte antes da reforma mostra o quanto a doença se disseminou durante o processo produtivo de uma usina, ou seja, o quão eficiente está o controle da doença.

Não se conhece o número de usinas/unidades produtivas que adotam o teste diagnóstico dos materiais a serem propagados, muitos podem ainda não ter a exata noção da importância do uso de material propagativo sadio para o controle do raquitismo-das-soqueiras. Ademais, muitas das usinas que já fazem uso dessa estratégia de controle podem não estar conscientes dessa tendência de alta na incidência do raquitismo observada no período estudado.

Presença de raquitismo após vários cortes em variedades suscetíveis
Presença de raquitismo após vários cortes em variedades suscetíveis

Um outro estudo também foi iniciado na UFSCar, campus Araras, para complementar os dados de contaminação dos materiais propagativos aqui apresentados. A pesquisa emprega três importantes variedades brasileiras (RB867515, RB92579, RB966928), sadias e doentes em relação ao raquitismo-das-soqueiras e submetidas a diferentes condições (com ou sem termoterapia). O objetivo é examinar o efeito de cada um dos tratamentos na produção de cana, a eficácia do tratamento térmico e o progresso da doença em função do número de cortes (ou colheitas). Um ponto que já chamou a atenção no campo é que não é possível a identificação das plantas doentes durante o desenvolvimento vegetativo, exemplo ilustrativo pode ser visto na Figura 1, que mostra as canas dois meses após o transplante ao campo; a única diferença visível ocorreu no desenvolvimento das variedades. Já a Figura 2 mostra as canas com 100 dias de campo, onde o mesmo padrão se repetiu, qual seja, a impossibilidade de se diferenciar canas de parcelas doentes, sadias ou submetidas ao tratamento térmico, se forem da mesma variedade. A impossibilidade de identificação no campo das plantas doentes vista nesse estudo confirma mais uma vez o quão traiçoeira essa doença é, a consequência do emprego de material vegetativo doente somente vai ser verificada (e quantificada) por ocasião da colheita, o que se espera obter em um futuro próximo.

O objetivo desse artigo foi o de levar ao setor produtivo os dados mais recentes sobre a qualidade sanitária dos talhões em relação ao raquitismo-das-soqueiras e do perigo potencial dessa doença. Com isso, se busca contribuir para evitar a disseminação da doença para novos canaviais e aumentar a produtividade do setor.

Urashima alerta para o perigo potencial da doença nos canaviais do Brasil
Urashima alerta para o perigo potencial da doença nos canaviais do Brasil

Alfredo Seiiti Urashima, UFSCar Campus Araras

Cultivar Grandes Culturas Setembro 2020

A cada nova edição, a Cultivar Grandes Culturas divulga uma série de conteúdos técnicos produzidos por pesquisadores renomados de todo o Brasil, que abordam as principais dificuldades e desafios encontrados no campo pelos produtores rurais. Através de pesquisas focadas no controle das principais pragas e doenças do cultivo de grandes culturas, a Revista auxilia o agricultor na busca por soluções de manejo que incrementem sua rentabilidade. 

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