Artigo: Pesquisa em resíduos, agricultura e ambiente

14.02.2014 | 21:59 (UTC -3)
Adriana Pires e Cristiano de Andrade

No meio rural, o aproveitamento de resíduos não é novidade, práticas como manutenção de restos vegetais no solo e uso de dejetos animais como fertilizante têm sido preconizadas há anos. Entretanto, a realidade é que parte dos resíduos é descartada de forma inadequada ou seu aproveitamento é feito de forma empírica, sem bases científicas sólidas que prezem pela eficiência agronômica da reciclagem dos materiais no solo agrícola, ou ainda, que indiquem destinos alternativos desses materiais em benefício da sustentabilidade da produção e do produtor, como, por exemplo, o uso de alguns resíduos para produção de energia. Estima-se que mais de 65% dos dejetos produzidos na produção animal não são reaproveitados e frequentemente são descartados de forma inadequada. Tal cenário representa um contrassenso, uma vez que o Brasil possui solos altamente intemperizados e com baixos teores de matéria orgânica e nutrientes, tornando a produção nacional fortemente dependente do uso de fertilizantes, na maior parte importados a elevados custos.

O Brasil é o terceiro maior importador de fertilizantes do mundo, sendo que em 2009 importou 1,8 milhões de toneladas de Nitrogênio (N), 1,5 milhões de toneladas de Fósforo e 3,4 milhões de toneladas de Potássio. Como citado, o país produziu neste mesmo ano 1,7 bilhões de toneladas de dejetos, sendo 365 milhões oriundas de sistemas confinados. Considerando apenas a quantidade gerada em confinamento, dada a dificuldade de recuperação de dejetos em sistemas extensivos e o teor médio de nitrogênio destes resíduos igual a 2%, tem-se 7,3 milhões de toneladas de nitrogênio, sabe-se que apenas parte do nitrogênio orgânico estará disponível em curto prazo. Portanto se considerarmos que 30% do N total serão disponibilizados no ciclo produtivo de uma cultura anual qualquer, temos 2,19 milhões de toneladas de N, além do efeito residual em outros cultivos. Com esse cálculo simples pode-se concluir que o desperdício anual de nitrogênio é 1,2 vezes maior do que a quantidade importada, considerando-se apenas os dejetos animais.

A mesma linha de raciocínio pode ser aplicada para o restante de matéria e energia proveniente do campo, mas que foi exportada para centros urbanos, principalmente para alimentação da população. Resíduos como a fração orgânica do lixo urbano e lodos de esgoto também poderiam ser reciclados na agricultura, novamente com fonte de matéria orgânica e nutrientes no solo. Estima-se que no Brasil a fração orgânica do lixo represente 50% da massa total coletada, algo em torno de 94.335 t/dia, que poderia ter destino mais nobre do que os aterros sanitários, onde a reciclagem desse material em benefício da sociedade é restrita há algum reaproveitamento do metano gerado para fim energético e onde a decomposição do material orgânico representa dificuldade gerencial associada a elevados custos de manutenção do aterro (abatimento de células de aterramento, geração de chorume, entre outros). Somente por volta de 1,6% do lixo (1.509 t/dia) é atualmente encaminhado para reaproveitamento via processo de compostagem.

Neste contexto, várias campanhas foram realizadas e políticas públicas estabelecidas, o que culminou na publicação do Plano Nacional de Resíduos Sólidos em 2011. Este documento obriga os municípios a apresentarem planos de implantação de coleta seletiva e de tratamento/reaproveitamento de dejetos orgânicos. Embora seja um marco importante quanto ao reuso de resíduos, alguns pontos precisam ser melhorados, principalmente em relação às opções para seu aproveitamento.

O país abarca condições econômicas, sociais e ambientais bastante variáveis e a melhor solução de reaproveitamento de um resíduo deve refletir determinada demanda regional ou local pré-definida. Nesse sentido, cita-se como exemplo o caso dos resíduos de atividades agropecuárias, cuja principal indicação no Plano Nacional de Resíduos Sólidos é o uso para fins energéticos. Tal recomendação é questionável ao se considerar, por exemplo, a importância dos restos vegetais na ciclagem de nutrientes e na manutenção da fertilidade do solo. O posicionamento das instituições de pesquisa do Brasil frente a essa realidade tem sido demandado pelos setores produtivos e pela sociedade de modo geral, em que se questiona a melhor opção de destinação de resíduos com vistas à sustentabilidade e à eficiência de produção.

Esse debate é atual no setor sucroalcooleiro, em que a palha de sistemas produtivos sem queima prévia para colheita representa importante aporte de biomassa, que pode ser deixada no campo e/ou recolhida parcial/totalmente para geração de energia na Usina. Sabe-se que uma opção interfere na outra, porém não se compreende completamente as consequências em médio e longo prazos do recolhimento parcial ou total da palha que deixaria de ciclar no solo.

Se a temática é antiga e o apelo ambiental, social e econômico são claros, porque o reaproveitamento de resíduos não é uma realidade no Brasil? Adicionalmente, porque alguns setores produtivos como o sucroalcooleiro, celulose e papel, suco de laranja, café, entre outros, representam exemplos de sucesso com relação à minimização de resíduos e reaproveitamento?

A resposta consiste em inovação, cujo papel da pesquisa científica é fundamental. Deixar o empirismo no aproveitamento de resíduos e passar a tratar o assunto com abordagem técnica é o grande desafio.

Inovação também remete a novos usos, seja para a produção de energia, de farmacêuticos, de cosméticos, uso como remediadores de contaminantes no solo ou como minimizadores de incidência de doenças. Evidentemente, o tema consiste em amplo quadro de oportunidades. Quantos microrganismos, por exemplo, catalisadores do processo de compostagem devem existir nas coleções brasileiras, mas que ainda não se fez a prospecção? Quantos resíduos são produzidos regionalmente com grande potencial para produção de energia e ainda não foram adequadamente desenvolvidos para esse fim? Quantos resíduos podem ser reaproveitados para fins cosméticos ou farmacêuticos em uso combinado ou não com biotecnologia?

A pesquisa tem se dedicado a estudos envolvendo o uso de resíduos de forma geral, mas com avanço relativamente lento em função de esforços pontuais e dispersos. A organização da pesquisa, o estreitamento de sua relação com empresas do setor e o estabelecimento de foco na inovação destas práticas são estratégicos para transformação da realidade nacional no que diz respeito ao reaproveitamento de resíduos.

*As estimativas apresentadas foram baseadas no “Plano Nacional de Resíduos Sólidos: diagnóstico dos resíduos urbanos, agrosilvopastoris e a questão dos catadores”, publicado como Comunicados do Ipea 145 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada em 2012 e no Anuário estatístico do setor de fertilizantes - Anda (2009).

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