Digestão bloqueada, praga controlada

30.01.2013 | 21:59 (UTC -3)
Fábio Reynol

Diversas enfermidades humanas, como dengue, doença de chagas e leishmaniose, e pragas que destroem lavouras de algodão, cana-de-açúcar e bananeira são problemas que têm como ponto comum o fato de serem provocadas por insetos.

Uma extensa pesquisa feita no Instituto de Química (IQ) da Universidade de São Paulo (USP) ampliou o conhecimento sobre diferentes insetos por meio de uma abordagem peculiar: a investigação da função intestinal. Com isso, abriu espaço para métodos inovadores de controle.

O trabalho compôs o projeto “A digestão dos insetos: uma abordagem molecular, celular, fisiológica e evolutiva”, conduzido de 2008 a 2012 e apoiado pela FAPESP por meio da modalidade Auxílio à Pesquisa – Projeto Temático.

O projeto, coordenado por Walter Ribeiro Terra, professor titular do IQ-USP – com a professora Clelia Ferreira como investigadora principal e vice-coordenadora –, é uma continuação de Temáticos sobre o mesmo tema desenvolvidos desde 1991. O novo projeto teve início em 2012 com conclusão prevista para 2017.

Entre as principais descobertas do projeto concluído este ano foi a de que mosquitos hematófagos da ordem Díptera têm em comum tripsinas especiais, fundamentais para a digestão de proteínas. “Essa informação torna esse tipo de tripsina um possível alvo de controle para todos os mosquitos desse grupo”, disse Terra.

Trata-se de um alvo bastante relevante, uma vez que a ordem Díptera engloba os gêneros Anopheles, Aedes e Culex, os quais agrupam insetos vetores de importantes doenças como malária, febre amarela, dengue e filariose.

Segundo Terra, inibir a tripsina poderia ser um método eficaz de controle dessas doenças, uma vez que bloquearia o processo de digestão dos insetos. Para isso, o trabalho também envolveu a busca por inibidores químicos das enzimas encontradas.

O método utilizado foi o da modelagem computacional a partir de imagens tridimensionais dessas moléculas. Em um modelo digital em 3D da enzima a ser inibida são testadas virtualmente moléculas inibidoras que se encaixam no maior número possível de reentrâncias, ou sítios funcionais.

“Em quanto mais sítios funcionais o reagente atracar, mais forte será a ligação e mais eficiente será o inibidor”, disse Terra à Agência FAPESP, explicando que a modelagem molecular 3D é amplamente usada na indústria farmacêutica.

A enzima bloqueada não consegue se recombinar e cumprir sua função no processo de digestão, o de quebrar outras moléculas. Sem conseguir absorver os nutrientes de que precisam, os mosquitos morrem.

O estudo da fisiologia do barbeiro Rhodnius prolixus, vetor da doença de chagas, sempre foi difícil e a observação de sua função intestinal um obstáculo para os pesquisadores.

A equipe de Terra contornou o problema encontrando um inseto similar, o Dysdercus peruvianus, percevejo que ataca o algodão. Transcriptomas (partes do genoma que codificam proteínas) desse inseto mostraram detalhes que podem ser válidos também para o barbeiro, podendo gerar alvos de controle naquele inseto.

O agronegócio da cana-de-açúcar também poderá se beneficiar do estudo. A catepsina L, enzima digestiva típica de muitos besouros, foi isolada no Sphenophorus levis, besouro cuja fase larval ataca o sistema radicular da cana. Essa enzima foi clonada, expressa e caracterizada com substratos sintéticos e inibidores. A mesma enzima encontrada no Tenebrio molitor, besouro conhecido como bicho-da-farinha, teve sua estrutura tridimensional resolvida.

“O maior desafio em identificar a estrutura tridimensional é a cristalização da proteína, porque se ela não cristaliza não conseguimos obter o modelo”, disse Terra, esclarecendo que várias proteínas não conseguem formar cristais, inviabilizando a sua visualização tridimensional.

Uma estrutura particular do sistema intestinal dos insetos recebeu atenção especial no Projeto Temático conduzido no IQ-USP: a membrana peritrófica.

Em formato de um minúsculo tubo, sabe-se que seu papel está ligado à eficiência digestiva, porém suas funções ainda não são totalmente conhecidas pela ciência. Algumas dessas funções hipotéticas foram testadas em insetos modelos e descobriu-se que ela possui participação preponderante no desenvolvimento dos insetos.

Insetos cujas membranas peritróficas foram inibidas tiveram o seu desenvolvimento prejudicado. Ao mesmo tempo, algumas plantas possuem reagentes naturais que atacam essa membrana, o que as protege de serem devoradas por insetos. “Essas informações tornam essa estrutura um importante alvo para processos inovadores de controle”, observou Terra.

O Projeto Temático também promoveu avanços consideráveis no conhecimento da evolução das espécies. Além de possível alvo de controle das moscas domésticas, a enzima catepsina D também está presente em humanos e em outros animais que possuem sistemas digestivos muito ácidos voltados a processar alimentos ricos em bactérias.

“O interessante dessa descoberta foi constatar que a mesma adaptação evolutiva ocorreu duas vezes e de maneira independente na mosca e na espécie humana”, disse Terra.

Outro avanço importante foi sobre a morfofisiologia dos insetos. Um estudo com o percevejo Podisus nigrispinus, predador de outros insetos, mostrou que a então chamada digestão extraoral daquele inseto é uma dispersão dos tecidos da presa por ação de uma substância salivar. A digestão propriamente dita ocorre no interior do intestino do inseto.

A descoberta, publicada no Journal of Insect Physiology, provocou uma menção especial de um parecerista da revista. “Ele escreveu que a partir desse trabalho deve-se repensar os conceitos de digestão fora do corpo”, disse Terra, salientando que a equipe recebeu com muito orgulho esse reconhecimento.

O projeto ainda identificou a lisozima como uma enzima crítica na digestão de moscas que atacam frutas, a trealase é crucial para lagartas pragas de lavouras e as beta-glucanases, ausentes nos mamíferos, estão relacionadas à digestão e ao sistema imunológico de insetos. Todas elas são potenciais alvos de controle dos insetos envolvidos.

Os resultados dos quatro anos de estudos estão registrados em 20 publicações e quatro capítulos de livros e os trabalhos de laboratório do projeto foram citados 1.357 vezes na literatura científica mundial nesse período.

No âmbito do Projeto Temático foram desenvolvidas três dissertações de mestrado, seis teses de doutorado e duas de pós-doutorado. O projeto contou com cinco Bolsas FAPESP de Iniciação Científica, uma de Doutorado e as duas de Pós-Doutorado.

O Temático ainda promoveu trabalhos em parcerias com diversas instituições nacionais como a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a Universidade Federal de Lavras (UFL), a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) de Entomologia Molecular do qual o IQ-USP faz parte e a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) também da USP.

O grupo ainda participa de um consórcio internacional para o sequenciamento do genoma do barbeiro Rhodnius prolixus cujos resultados ainda estão em análise e, de acordo com Terra, ainda devem gerar diversas aplicações práticas.

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