Cuidado com a diarréia

A Diarréia Aguda Indiferenciada caracteriza-se por aumento da quantidade e do conteúdo líquido nas fezes, causando desidratação progressiva e até mesmo morte de bezerros.

10.11.2015 | 21:59 (UTC -3)

A diarréia dos bezerros é uma enfermidade multifatorial que acomete animais nos primeiros dias de vida causando importantes perdas econômicas, principalmente por retardo de crescimento e mortalidade. Uma série de fatores influencia a ocorrência da enfermidade, envolvendo fatores relacionados ao manejo dos animais, à inadequação das defesas do hospedeiro e à contaminação ambiental. Assim, não é surpreendente que a abordagem tradicional de tratamento e controle que compreende que o processo de perda de saúde (doença) de indivíduos de um rebanho como sendo determinada pela relação direta patógeno-enfermidade, em grande parte desses casos não é eficaz e apresenta custo/benefício desfavorável.

Este artigo tratará da ocorrência de diarréia em bovinos de corte até os 60 dias de vida e seu controle. Utilizaremos o termo Diarréia Aguda Indiferenciada (DAI) para definir esta enfermidade já que, baseado em sinais clínicos é impossível identificar o(s) agente(s) envolvidos.

A DAI caracteriza-se por um aumento da quantidade e do conteúdo de líquido nas fezes, desidratação progressiva e morte. Inicialmente, os animais se apresentam em alerta, mas, em seguida, tornam-se deprimidos e fracos. A morte ocorre por choque hipovolêmico devido à desidratação, perda de eletrólitos e presença de toxinas bacterianas.

A ocorrência de diarréia em rebanhos de corte varia de 5-50% dos bezerros, sendo influenciada por fatores de manejo, higiene e detecção de DAI a campo. A ocorrência anual de DAI deve ser inferior a 5% na média geral de um rebanho de corte, aceitando-se até 15% em bezerros filhos de vacas de primeira cria, com mortalidade máxima de bezerros de 3-5% de 2 a 60 dias. Muitas vezes, esses valores são sub-detectados na propriedade porque muitos casos da enfermidade são leves e auto-limitantes. Cabe ressaltar que os bezerros atuam como amplificadores dos microrganismos responsáveis pela DAI. O nascimento representa a passagem do bezerro de um ambiente virtualmente estéril a um novo ambiente hostil, com vários microrganismos potencialmente patogênicos. Quando a contaminação ambiental é baixa, os bezerros conseguem, através da imunidade colostral, equilibrar-se rapidamente nesse novo ambiente. Mesmo assim, a excreção de microrganismos por esses bezerros contribui para o aumento da contaminação ambiental e os próximos bezerros serão expostos a uma carga infecciosa muito maior.

Nos primeiros dias de vida, os bezerros são dependentes da proteção transferida da mãe via colostro. Além de nutrientes, o colostro é rico em imunoglobulinas, células de defesa e citocinas que auxiliam na proteção passiva do recém-nascido e na estimulação do seu sistema imunológico, para que possa desenvolver com eficiência as suas defesas próprias. A habilidade da mucosa intestinal em absorver macro-moléculas é limitada às primeiras 24-48 horas de vida. Esse tempo é influenciado pela quantidade de leite ingerido nas primeiras horas, pelo número de vezes em que o animal ingere colostro (muito colostro em pequeno número de mamadas, menos tempo de absorção) e pelas condições fisiopatológicas do bezerro (animais que sofrem durante o parto absorvem macro-moléculas por menos tempo). Os bezerros devem ingerir em torno de dois quilos de colostro nas três primeiras horas de vida e em torno de sete quilos nas primeiras 48 horas.

Iimunidade colostral

A transferência da imunidade colostral é essencial para a prevenção de DAI. Somente 15% dos bezerros que morrem com alguma doença infecciosa apresentam concentração de IgG normal no soro sanguíneo e a falha na transferência de colostro pode ocorrer em 10-40% dos partos. Wittum et al (1995) demonstraram que os bezerros com baixa imunidade colostral adoeceram mais (20,4% contra 7,5% daqueles com imunidade normal) e morreram mais (8,3% contra 1,6%) durante os primeiros 28 dias de vida, apresentando uma média de peso 16 quilos inferior no momento do desmame.

Um bezerro saudável deve ser capaz de ingerir colostro, preferencialmente, nas três primeiras horas de vida. Também a habilidade materna, a adequada produção de colostro e a conformação de úbere e tetos são importantes. Caso o bezerro não consiga mamar nas três primeiras horas de vida, a vaca deve ser contida e o animal auxiliado a mamar. Em casos em que a quantidade de colostro da mãe não é suficiente, o bezerro deve receber colostro, fresco ou congelado, de outra vaca do rebanho.

Existem alguns testes que permitem avaliar a eficiência da transferência de imunoglobulinas pelo colostro, com resultado rápido. Os testes de precipitação com sulfito de sódio ou de turbidez com sulfato de zinco são práticos para uso a campo e devem ser realizados entre 12-24 horas após o parto. Se a quantidade de bezerros com baixa transferência exceder a 15% do total dos animais desta categoria significa que há falhas no manejo dos neonatos.

Esses testes são úteis para uma estimativa da qualidade da transferência de imunidade passiva no rebanho, mas não podem ser supervalorizados. O conceito de falha na transferência passiva excede a, simplesmente, absorção de imunoglobulinas, já que outras substâncias favoráveis à resposta imune são transferidas pelo colostro (células e defesa, citocinas). Da mesma forma, o colostro da mãe não protegerá o bezerro se ela não possuir imunoglobulinas específicas aos patógenos existente no local de parição ou de cria, assim como em situações de alta contaminação ambiental, baixo estado nutricional ou outras situações de estresse.

Um dos principais fatores para que ocorra a devida ingestão de colostro pelo bezerro é a ocorrência de um parto rápido e sem complicações. Bezerros que sobrevivem a distocias possuem 2,4 a 6 vezes mais chances de desenvolver alguma enfermidade, entre elas a DAI, nos primeiros dias de vida.

Assim, as medidas de controle de DAI iniciam muito antes do parto. As duas principais causas de distocia são bezerros excessivamente grandes e a reduzida área pélvica das matrizes. Esforços para evitar estes problemas devem ser demandados.

É importante o acompanhamento do parto e intervenção quando necessário. A desinfecção do umbigo com álcool iodado ou outro desinfetante auxilia na prevenção de infecções umbilicais que podem debilitar o bezerro.

Local do parto

Potreiros com alta lotação de animais, com animais de várias idades, úmidos e sem proteção ao vento e ao sol predispõem a ocorrência de DAI, bem como a manutenção de grupos de várias faixas etárias juntos. Animais adultos contribuem com essa contaminação e com a introdução de novos possíveis patógenos.

Medidas de manejo podem ser aplicadas para reduzir a contaminação ambiental. O potreiro deve ser limpo, seco, bem drenado, com boa disponibilidade de água, quebra-vento e sombra. Ele deve facilitar o acompanhamento do parto e, quando necessário, a intervenção humana. Deve ser mantido livre de animais por 45-60 dias antes do início da parição. Durante a estação de parição, a lotação não deve exceder a uma vaca a cada 300m2 e, se possível, não deve haver mais de 100 fêmeas no local. As fêmeas devem permanecer nesse potreiro o mínimo de tempo possível – colocadas no potreiro 2-3 semanas antes do parto e retiradas 24-48 horas depois.

A relação número de animais e tamanho do potreiro pode não representar o real nível de contaminação ambiental. Se as fêmeas não forem estimuladas a se locomover dentro do potreiro, elas tenderão a se concentrar próximo das fontes de água e nos locais mais abrigados do vento ou do sol e contaminarão estes locais. É importante planejar que esses locais fiquem afastados um do outro ou que existam mais de um destes pontos. Quando os animais recebem suplementação alimentar, essa deve ser ofertada longe da fonte de água.

Esses princípios devem ser considerados também para controlar surtos em andamento. É recomendada a manutenção de pequenos piquetes vazios, para colocação de bezerros com diarréia e suas mães, separando-os do rebanho. Quando muitos animais estão acometidos é indicada a redução imediata da lotação do potreiro onde estão esses animais e, em casos graves, a troca do potreiro de parição.

Primíparas

Os bezerros de fêmeas de primeira cria possuem risco maior de DAI. Essas fêmeas estão em fase final de crescimento, apresentando índice maior de distocias e a sua “experiência imunológica” é menor, portanto, possuem maiores riscos de falha de transferência de imunidade. Deve ser permitido às vaquilhonas parirem antes das vacas mais velhas e com período de parição o mais curto possível. Desta forma, elas encontrarão um ambiente menos contaminado para seus bezerros e a mão-de-obra disponível e a assistência ao parto será otimizada.

Imunidade específica

A qualidade da imunidade transferida pelo colostro pode ser especificamente elevada, através da utilização de vacinação das mães no terço final da gestação. Vacinas contra diversos agentes causadores de diarréia estão disponíveis no mercado, sendo eficazes na redução da ocorrência de casos, quando associadas à boa condição de manejo. Além disso, é importante ressaltar que o complexo DAI é multi-etiológico e os agentes envolvidos podem apresentar variações antigênicas importantes, podendo exigir diferente composição antigênica das vacinas. As vacinas disponíveis no Brasil contêm geralmente antígenos de cepas padrão de rotavírus, coronavírus, antígeno F5 de E. coli e toxóides de C. perfringens.

Tratamento

O tratamento da diarréia consiste em re-hidratar o animal, sendo que nos casos mais leves, pela via oral. A hidratação oral pode ser feita com uma fórmula que contenha água, glicose e eletrólitos (dois litros, três vezes ao dia, de uma solução contendo 36g de bicarbonato de sódio, 38g de cloreto de sódio, 10g de cloreto de potássio e 200g de glicose em 10 litros de água). Alguns cuidados devem ser tomados quando se utilizam soluções com bicarbonato de sódio, especialmente, não administrar junto com leite (4 horas de intervalo). Em casos de desidratação moderada a grave, a administração de soro endovenoso deve ser realizada (50-100 ml/kg durante um período de 2-4 horas) ou por via intraperitoneal (500-800 ml 1-2 vezes ao dia) e dá-se continuidade ao tratamento com a hidratação oral.

Em criações orgânicas é recomendado o uso do decocto (chá) de folhas de goiabeira (Psidium guajava) ou pitangueira (Eugenia uniflora) que apresentam flavonóides com ação antibiótica e retardam o fluxo intestinal, além de possuir alto conteúdo de tanino que protege a mucosa intestinal.

Os bezerros afetados devem ser separados dos demais com suspensão da oferta de leite durante o período de dois a três dias. A antibioticoterapia pode ser indicada em alguns casos mais graves ou com sintomatologia de septicemia.

Em casos de surtos de eimeriose, utiliza-se anticoccídicos como o amprólio (10 mg/kg) ou a sulfaquinoxalina (8-70 mg/kg) durante cinco dias. Em situações de risco, utiliza-se o medicamento preventivamente, adicionado à água, ao sal mineral ou à ração. Nesse caso, pode-se utilizar o amprólio (5 mg/kg durante 21 dias), monensina (1 mg/kg durante 10-20 dias) ou outro anticoccídico.

Conclusão

A DAI é uma importante causa de perdas econômicas na criação de gado de corte, tanto intensiva quanto extensiva. Em alguns casos, sua importância é subestimada, pois os produtores não contabilizam o retardo de crescimento determinado pela enfermidade. É sabido que o ideal aqui proposto é de difícil execução prática no dia-dia do campo. Porém, a compreensão dos fatores envolvidos no desencadeamento de DAI e as possibilidades de ações preventivas permitem uma avaliação de riscos da propriedade e a análise de custo/benefício de cada medida a ser tomada.

Muitas das medidas de controle para DAI são facilitadas com o correto manejo reprodutivo do rebanho, que permita estabelecer as datas prováveis de parto e o conseqüente planejamento do manejo nutricional e sanitário correto das fêmeas. A concentração da época de partos facilitará a assistência ao parto e o planejamento da estação de parição, otimizando o uso de potreiros de parição e, por fim, possibilitando a tomada de decisão no sentido de privilegiar as fêmeas de primeira cria na utilização desses locais. Assim, lograr-se-á que seus bezerros sejam expostos a um ambiente menos contaminado.

Na grande maioria dos casos, as medidas preventivas apresentam baixo custo e ótima eficácia. Além do mais, elas serão efetivas para prevenir outras enfermidades importantes na produção, como por exemplo, as enfermidades respiratórias, o que resultará no desenvolvimento mais saudável dos bezerros nos seus primeiros dias de vida.

Fatores envolvidos na ocorrência de DAI e atitudes de controle e prevenção

Salmonelose

é uma enterobactéria que provoca diarréia e doença septicêmica hemorrágica em bezerros e aborto em vacas. Cerca de 2.200 variantes são descritas. As mais encontradas em bovinos são os sorovares Dublin, Typhimurium, Newport e Bredeney (4; 16; 19). A enfermidade é mais comum em bezerros com mais de um mês, embora possa ocorrer em animais mais jovens.

Coccidioses

sp. é um protozoário encontrado nas fezes de animais normais e diarréicos. Geralmente, infecta bezerros jovens, estando associado à diarréia de gravidade variada, muitas vezes associado a outro agente patogênico. Admite-se a existência de duas espécies que infectam bovinos –

e

, este parasita os enterócitos do intestino delgado levando à síndrome de má absorção e diarréia.

São muitas as espécies de Eimeria que infectam bovinos. As mais importantes como causa de DAI são a

e a

. A eimeriose é mais comum em bezerros após o desmame. Porém, em situações de alta contaminação ambiental, pode afetar bezerros mais jovens, acima de três semanas de idade.

Viroses

Muitos agentes virais são implicados como causadores de diarréia. No entanto, os rotavírus e os coronavírus são os principais, atuando como agentes de enterite em animais jovens.

A infecção pelo coronavírus ocorre no primeiro mês de vida. O agente infecta as células das vilosidades intestinais, especialmente do intestino delgado e cólon, levando à atrofia e, em conseqüência, causando diarréia por má absorção. Poucos estudos foram feitos no Brasil relatando casos de enterite por este vírus. Tem sido descrita, também, uma forma grave de coronavirose afetando animais maiores de 9 meses, caracterizada por diarréia sanguinolenta, anorexia, depressão e queda da produção de leite.

O rotavírus tem por alvo as células das vilosidades, preferencialmente, de animais nos primeiro 15 dias de vida, embora casos em animais mais velhos já foram descritos. Existem 14 sorotipos de rotavírus. Em geral, está associado a E. coli e outros patógenos.

Enterotoxemia

é um habitante do trato digestivo dos animais e que, em condições favoráveis, provoca enterotoxemia.

tipos B e C, que produzem toxina beta, podem causar enterotoxemia em ruminantes, com diarréia hemorrágica grave, na primeira semana de vida. Esta doença não tem sido descrita no Brasil. A enterotoxemia causada pela toxina épsilon produzida por C. perfringens tipo D pode ocorrer em bezerros, no entanto é mais comum em ovinos com 3-10 semanas.

Colibacilose

é uma enterobactéria presente na flora normal dos animais. A expressão de fatores de patogenicidade como fímbrias e exotoxinas propiciam a que essas bactérias causem diarréia. As cepas enterotoxigênicas (ETEC) são as mais freqüentes em bezerros neonatos, até o quinto dia de idade. Produzem uma exotoxina termoestável (ST) responsável pela patogenicidade e expressam fímbrias de aderência que são o principal alvo das defesas do hospedeiro. Cepas enteropatogênicas de

(EPEC) apresentam fatores de aderência e produzem destruição das células epiteliais das vilosidades, causando enterite, endotoxemia e septicemia, enquanto que as amostras entero-hemorrágicas (EHEC) aderem-se ao epitélio intestinal e produzem citotoxinas causando enterite ou colite hemorrágica. Estas amostras podem causar diarréia em bezerros de até oito semanas de idade.

Microrganismos

Os microrganismos mais encontrados em DAI são

Rotavírus, Coronavírus e Clostridium perfringens em bezerros de até um mês de vida, enquanto que em animais com 1-6 meses

spp.,

spp. e

spp., juntamente com os parasitos gastrintestinais. Em geral, esses agentes aparecem associados, atuando de forma sinérgica para o agravamento do quadro clínico.

Luiz Filipe Damé Schuch

UFPel

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