
A mancha-amarela ou mancha-bronzeada do trigo, causada pelo fungo Drechslera tritici-repentis (Died.) Shoemaker, representa uma das mais importantes doenças foliares da triticultura mundial.
Reino: Fungi
Filo: Ascomycota
Classe: Dothideomycetes
Ordem: Pleosporales
Família: Pleosporaceae
Gênero: Pyrenophora
Espécie: Pyrenophora tritici-repentis (Died.) Drechsler
Aspectos taxonômicos
Inicialmente descrito por Diedicke em 1901 como Helminthosporium tritici-repentis, o fungo passou por diversas reclassificações até seu posicionamento atual na família Pleosporaceae, ordem Pleosporales, classe Dothideomycetes do filo Ascomycota.
O pleomorfismo deste fungo manifesta-se através de duas formas reprodutivas distintas: a forma anamórfica ou assexual (Drechslera tritici-repentis), que produz conídios fusiformes multicelulares de coloração marrom-olivácea; e a forma teleomórfica ou sexual (Pyrenophora tritici-repentis), caracterizada pela produção de pseudotécios contendo ascos e ascósporos.
Com as reformas do Código Internacional de Nomenclatura implementadas em 2013, que eliminaram a obrigatoriedade de nomenclatura dual para fungos pleomórficos, Pyrenophora tritici-repentis passou a ser o nome taxonomicamente correto e preferido na literatura científica contemporânea, embora Drechslera tritici-repentis permaneça amplamente utilizado em publicações agronômicas e materiais de extensão rural.
Esta dualidade nomenclatural não representa apenas uma questão terminológica, mas reflete aspectos biológicos fundamentais do patógeno. A fase sexual, responsável pela produção de ascósporos dispersos pelo vento, constitui a principal fonte de inóculo primário e contribui significativamente para a variabilidade genética do patógeno através da recombinação meiótica. A fase assexual, por sua vez, produz conídios em grande quantidade que são dispersos por respingos de chuva, promovendo ciclos secundários de infecção e a rápida amplificação das populações do fungo durante a estação de crescimento.
Biologia e ciclo de vida
Durante a entressafra, Drechslera tritici-repentis sobrevive predominantemente como saprófita em restos culturais de trigo, onde pode permanecer viável por dois a três anos. Neste substrato, desenvolve-se a fase sexual, com a formação de pseudotécios esféricos de coloração escura, medindo 300 a 500 μm de diâmetro, dentro dos quais se desenvolvem ascos contendo tipicamente oito ascósporos cada.
Com o início de uma nova safra e sob condições ambientais favoráveis, os ascósporos são liberados e dispersos pelo vento, podendo percorrer longas distâncias e iniciar novas infecções em plantas de trigo. A germinação destes esporos requer água livre na superfície foliar, ocorrendo otimamente em temperaturas entre 20 e 25°C.
O processo de germinação produz um tubo germinativo que diferencia um apressório melanizado na extremidade, estrutura especializada capaz de gerar pressão de turgor de até 8,0 MPa, suficiente para romper a cutícula e a parede celular da epiderme e estabelecer a infecção.
O processo de patogênese inicia-se com uma breve fase biotrófica, durante a qual o fungo cresce sem causar morte celular imediata, suprimindo temporariamente os mecanismos de defesa da planta. Esta fase é rapidamente seguida por uma transição para o modo necrotrófico, marcada pela produção e secreção de fitotoxinas específicas que induzem morte celular programada nos tecidos do hospedeiro. Esta estratégia hemibiotrófica permite ao patógeno estabelecer-se inicialmente sem desencadear respostas de defesa vigorosas, para posteriormente explorar os nutrientes liberados pela morte celular.
Após a colonização dos tecidos foliares, o fungo produz conidióforos que emergem através dos estômatos, sustentando conídios que servem como inóculo secundário. Estes conídios, dispersos principalmente por respingos de chuva em curtas distâncias, são responsáveis pelos ciclos policíclicos de infecção que caracterizam as epidemias da doença durante a estação de crescimento. Sob condições ambientais favoráveis, o ciclo completo desde a infecção até a esporulação pode ocorrer em 7 a 14 dias, permitindo múltiplas gerações do patógeno durante uma única safra.
Interação molecular com o hospedeiro
A patogenicidade de Drechslera tritici-repentis fundamenta-se primariamente na produção de fitotoxinas específicas do hospedeiro (Host-Specific Toxins - HSTs). Estas toxinas constituem os principais fatores de virulência e determinam um padrão único de interação patógeno-hospedeiro que inverte o modelo clássico de resistência genética descrito por Flor.
A toxina Ptr ToxA, uma proteína de aproximadamente 13,2 kDa, representa o fator de virulência mais estudado e compreendido. Esta toxina é internalizada pelas células vegetais portadoras do gene de sensibilidade Tsn1, localizando-se nos cloroplastos onde desencadeia uma cascata de sinalização que culmina na produção de espécies reativas de oxigênio e na indução de morte celular programada. Paradoxalmente, neste sistema a presença do gene Tsn1 no trigo confere suscetibilidade dominante, contrariando o modelo clássico onde genes de resistência dominantes conferem proteção contra patógenos avirulentos. A ausência de Tsn1, portanto, resulta em resistência à toxina e consequentemente à raça do patógeno que a produz.
Adicionalmente, o patógeno pode produzir outras toxinas, incluindo Ptr ToxB e Ptr ToxC, que causam sintomas predominantemente cloróticos e interagem com diferentes genes de sensibilidade no hospedeiro (Tsc2 e outros ainda não completamente caracterizados). A combinação de toxinas produzidas por diferentes isolados define as raças fisiológicas do patógeno, tendo sido identificadas oito raças principais numeradas de 1 a 8, sendo a raça 1 (produtora de Ptr ToxA e Ptr ToxC) a mais comum e amplamente distribuída globalmente.
Um aspecto particularmente intrigante da biologia molecular de D. tritici-repentis é a origem evolutiva do gene ToxA. Evidências filogenéticas e moleculares indicam que este gene foi adquirido por transferência horizontal de Parastagonospora nodorum, outro importante patógeno do trigo, evento que demonstra a plasticidade genômica dos fungos fitopatogênicos e sua capacidade de adquirir novos fatores de virulência através de mecanismos não convencionais de evolução.
Além das toxinas, o patógeno produz um arsenal de enzimas degradativas, incluindo cutinases, celulases, pectinases, proteases e lipases, que facilitam a penetração, colonização e obtenção de nutrientes dos tecidos do hospedeiro. O fungo também secreta efetores que suprimem a imunidade basal da planta, interferindo com vias de sinalização de defesa e permitindo o estabelecimento bem-sucedido da infecção.
A resposta do trigo à infecção envolve complexas redes de sinalização hormonal, destacando-se as vias do ácido salicílico, ácido jasmônico e etileno, com interações sinérgicas e antagônicas que determinam o resultado final da interação. Em cultivares portadores de genes de resistência quantitativa (Tsr1 a Tsr9 e outros loci ainda sendo identificados), observa-se redução no tamanho das lesões, aumento do período de latência e diminuição da taxa de esporulação, embora não haja imunidade completa. A piramidização de múltiplos genes Tsr combinada com a ausência de genes de sensibilidade a toxinas representa a estratégia mais promissora para o desenvolvimento de resistência durável.
Ecologia e epidemiologia
A ecologia de Drechslera tritici-repentis está intrinsecamente ligada aos sistemas agrícolas modernos, particularmente ao plantio direto com cobertura permanente do solo. Este sistema, embora benéfico para a conservação do solo e sustentabilidade ambiental, cria condições extremamente favoráveis para a sobrevivência e multiplicação do patógeno ao manter restos culturais de trigo na superfície, que servem como reservatório de inóculo primário.
A distribuição geográfica do patógeno é cosmopolita, estando presente em praticamente todas as regiões tritícolas do mundo, desde zonas temperadas a subtropicais. Regiões com primaveras e verões caracterizados por temperaturas moderadas (18-28°C) e precipitação regular são particularmente favoráveis ao desenvolvimento de epidemias. No Brasil, a região Sul apresenta condições climáticas ideais para a doença, com epidemias frequentes e severas, especialmente no Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, onde a triticultura é mais expressiva e o sistema de plantio direto amplamente adotado.
O desenvolvimento de epidemias segue um padrão policíclico típico, iniciando-se com infecções primárias causadas por ascósporos dispersos pelo vento a partir de restos culturais. As lesões resultantes produzem conídios que são dispersos por respingos de chuva em curtas distâncias, estabelecendo focos secundários de infecção. Sob condições favoráveis, múltiplos ciclos de infecção ocorrem durante a estação de crescimento, com progressão característica da doença das folhas inferiores para as folhas superiores da planta.
A dinâmica populacional do patógeno é fortemente influenciada pela reprodução sexual, que ocorre nos restos culturais durante a entressafra. Este processo gera alta variabilidade genética através da recombinação meiótica, produzindo continuamente novos genótipos com diferentes combinações de genes de virulência. Esta diversidade genética representa um desafio significativo para o melhoramento genético, uma vez que populações sexualmente recombinantes têm maior capacidade de superar resistência monogênica e de se adaptar rapidamente a mudanças nas práticas agrícolas ou na pressão de seleção exercida por fungicidas.
A estrutura das populações de D. tritici-repentis varia geograficamente, refletindo diferenças em fatores climáticos, práticas agrícolas e cultivares predominantemente utilizados. Estudos de genética de populações revelam fluxo gênico significativo mediado pela dispersão de ascósporos pelo vento, resultando em menor subdivisão populacional em escalas regionais, embora diferenças substanciais possam ser observadas entre continentes ou regiões biogeográficas distintas.
A monocultura de trigo ou sucessões inadequadas, como trigo-soja sem culturas de cobertura apropriadas, criam "pontes verdes" através de plantas voluntárias e acumulam inóculo progressivamente, exacerbando o problema ano após ano. A rotação de culturas com espécies não-hospedeiras, como leguminosas, milho ou girassol, quebra este ciclo ao eliminar o substrato para sobrevivência do patógeno e promover a decomposição mais rápida dos restos culturais através da alteração da composição e atividade da comunidade microbiana do solo.
Etiologia e desenvolvimento da doença
O desenvolvimento de Drechslera tritici-repentis inicia-se com a deposição de esporos (ascósporos ou conídios) sobre a superfície foliar, seguida de germinação que requer água livre e temperaturas favoráveis. O período de incubação, intervalo entre a infecção e o aparecimento dos primeiros sintomas visíveis, varia tipicamente de 3 a 7 dias, dependendo da temperatura, do genótipo do hospedeiro e da virulência do isolado do patógeno.
Os sintomas característicos da doença manifestam-se como lesões necróticas de formato oval a losangular, com centro de coloração marrom-clara a bronzeada, circundado por um halo clorótico amarelo distintivo. Este padrão sintomatológico reflete a ação combinada das toxinas necróticas (causando morte celular no centro) e cloróticas (afetando a fotossíntese nas células adjacentes). O tamanho das lesões pode variar de poucos milímetros a 15 mm de comprimento, e em infecções severas, lesões individuais podem coalescer, resultando em extensas áreas de tecido necrótico e eventual morte prematura da folha.
A progressão da doença na planta segue um gradiente vertical característico, iniciando-se nas folhas inferiores e progredindo ascendentemente. A infecção da folha bandeira e das folhas superiores durante as fases críticas de espigamento e enchimento de grãos é particularmente prejudicial, uma vez que estas folhas são responsáveis pela maior parte da fotossíntese que sustenta o desenvolvimento dos grãos. Reduções de 30 a 70% na taxa fotossintética foram documentadas em folhas severamente infectadas, além de aumentos na respiração e transpiração que agravam ainda mais o balanço de carbono negativo da planta.
Os danos causados pela doença traduzem-se em perdas de rendimento através de múltiplos mecanismos: redução da área fotossintética funcional, senescência prematura das folhas, interferência na translocação de assimilados para os grãos, e redução do período efetivo de enchimento de grãos. Os componentes de rendimento mais afetados são o número de grãos por espiga e especialmente o peso individual dos grãos, resultando em grãos mais leves, chochos e com menor peso hectolítrico. Perdas de rendimento podem variar de 5-10% em infecções leves a mais de 50% em epidemias severas, com casos históricos documentando perdas superiores a 70%.
O diagnóstico preciso da doença é fundamental para a implementação de medidas de controle adequadas. No campo, o reconhecimento dos sintomas característicos e dos sinais do patógeno (conidióforos e conídios visíveis com lupa) geralmente é suficiente. No entanto, a diferenciação de outras doenças foliares do trigo, como septoriose (Zymoseptoria tritici), mancha da gluma (Parastagonospora nodorum) e ferrugens, pode requerer exame laboratorial. Métodos diagnósticos incluem isolamento em meio de cultura, observação microscópica da morfologia dos conídios, testes de patogenicidade, e crescentemente, técnicas moleculares como PCR e sequenciamento de DNA que permitem identificação rápida e precisa, além da caracterização de raças através da detecção de genes de toxinas.
Fatores predisponentes
O desenvolvimento de epidemias de mancha-amarela resulta da interação complexa entre patógeno virulento, hospedeiro suscetível e ambiente favorável.
Entre os fatores ambientais, o molhamento foliar prolongado representa o elemento mais crítico, sendo necessárias pelo menos 6 a 8 horas de água livre na superfície das folhas para que ocorra infecção bem-sucedida. Períodos mais longos de molhamento (>12 horas) associados a temperaturas na faixa de 20-25°C criam condições ideais para germinação de esporos, penetração e estabelecimento da infecção.
A precipitação desempenha papel duplo na epidemiologia da doença: por um lado, proporciona o molhamento foliar essencial para infecção; por outro, através de respingos, dispersa conídios em curtas distâncias, promovendo disseminação local do patógeno. Regiões com precipitação bem distribuída durante o ciclo do trigo, particularmente se associada a períodos prolongados de nebulosidade e formação regular de orvalho, apresentam risco elevado de epidemias.
A densidade de semeadura e a arquitetura do dossel influenciam significativamente o microclima dentro da cultura. Densidades excessivamente altas criam dosséis densos com menor circulação de ar e maior retenção de umidade, prolongando os períodos de molhamento foliar. Similarmente, o manejo nutricional, particularmente a adubação nitrogenada, requer cuidado: enquanto o nitrogênio é essencial para o desenvolvimento adequado da cultura, sua aplicação excessiva resulta em crescimento vegetativo exuberante, tecidos mais suculentos e maior suscetibilidade à infecção.
O sistema de plantio e o manejo de resíduos culturais constituem fatores determinantes na epidemiologia da doença. O plantio direto, embora benéfico sob diversas perspectivas agronômicas e ambientais, mantém restos culturais na superfície onde o patógeno sobrevive e completa seu ciclo sexual. A quantidade e a persistência de palha infectada determinam o potencial de inóculo primário para a safra subsequente. A rotação de culturas mitiga este problema ao interromper o ciclo do patógeno, promover a decomposição dos resíduos através de alterações na comunidade microbiana, e eliminar o substrato necessário para a sobrevivência do fungo.
Estratégias de manejo integrado
O controle eficaz de Drechslera tritici-repentis requer uma abordagem integrada que combine múltiplas táticas de manejo, reconhecendo que nenhuma medida isolada é suficiente para prevenir epidemias em sistemas intensivos de produção. A base de qualquer programa de manejo deve ser a resistência genética, representando a estratégia mais econômica, ambientalmente sustentável e eficaz de controle.
O melhoramento genético para resistência à mancha amarela deve considerar dois componentes principais: eliminação dos genes de sensibilidade a toxinas (Tsn1, Tsc2) e incorporação de múltiplos genes de resistência quantitativa (Tsr). A ausência de Tsn1 confere resistência completa às raças produtoras de Ptr ToxA, enquanto a piramidização de genes Tsr proporciona resistência parcial mas durável, reduzindo severidade da doença, tamanho de lesões e taxa de esporulação. Esta estratégia de resistência multicomponente é preferível à dependência de genes únicos de efeito maior, que historicamente têm sido superados pela evolução de novas raças virulentas.
A rotação de culturas representa a segunda pilar fundamental do manejo integrado. A inclusão de culturas não-hospedeiras por períodos mínimos de dois anos entre cultivos sucessivos de trigo reduz drasticamente o inóculo primário ao eliminar o substrato para sobrevivência do patógeno e acelerar a decomposição dos restos culturais. Culturas como soja, milho, leguminosas de cobertura ou girassol são excelentes opções de rotação. O uso de plantas voluntárias de trigo deve ser rigorosamente controlado, pois estas servem como "ponte verde" mantendo o patógeno viável entre safras.
O tratamento de sementes com fungicidas apropriados elimina o inóculo transportado por sementes infectadas, embora esta fonte de inóculo seja geralmente menos importante que os restos culturais. A escolha de cultivares adaptados à região e época de semeadura adequada podem proporcionar escape parcial de períodos de maior favorabilidade climática à doença. O manejo do dossel através de densidade de semeadura apropriada e espaçamento adequado entre linhas melhora a circulação de ar e reduz o tempo de molhamento foliar.
O controle químico com fungicidas constitui ferramenta importante quando as condições são altamente favoráveis à doença e os níveis de inóculo são altos. Fungicidas dos grupos dos triazóis, estrobilurinas e carboxamidas, isolados ou em misturas, demonstram eficácia contra D. tritici-repentis. A aplicação deve ser feita preventivamente ou no início do desenvolvimento da doença, idealmente antes ou durante o espigamento, quando a proteção da folha bandeira e folhas superiores é crítica. O uso racional de fungicidas, respeitando rotação de mecanismos de ação e evitando subdosagens, é essencial para retardar o desenvolvimento de resistência nos patógenos.
O monitoramento regular das lavouras permite a detecção precoce da doença e a tomada de decisões informadas sobre a necessidade e timing de intervenções. Sistemas de previsão baseados em modelos climáticos e dados históricos podem auxiliar no planejamento e na antecipação de períodos de maior risco. A vigilância contínua das populações do patógeno, através de coleta e caracterização de isolados, permite detectar mudanças na estrutura populacional, surgimento de novas raças ou desenvolvimento de resistência a fungicidas.
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